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O Papa
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08/01/2006
Discurso à Cúria (2)


O Papa - 07 Discurso à Cúria (2)
O Papa - 07 Discurso à Cúria (2)

PARTE (2)

Os bispos, mediante o sacramento que receberam, são fiduciários do dom do Senhor. São "administradores dos mistérios de Deus" (1 Co 4, 1), e como tais devem ser "fiéis e prudentes" (cf. Lc 12, 41-48). Isto significa que devem administrar o dom do Senhor de modo correto, para que não fique oculto em algum esconderijo, mas que dê fruto e o Senhor, ao final, possa dizer ao administrador:  "Posto que foste fiel no pouco, te porei à frente do muito" (cf. Mt 25, 14-30; Lc 19, 11-27). Nestas parábolas evangélicas se manifesta a dinâmica da fidelidade, que afeta o serviço do Senhor, e nelas também resulta evidente que, num Concílio, a dinâmica e a fidelidade devem ser uma só coisa.
 
À hermenêutica da descontinuidade, opõe-se a hermenêutica da reforma, como a apresentaram primeiro o Papa  João XXIII em seu discurso de abertura do Concílio em 11 de outubro de 1962 e depois o Papa Paulo VI no discurso de encerramento em 7 de dezembro de 1965. Aqui quisera citar somente as palavras, muito conhecidas, do Papa João XXIII, nas quais esta hermenêutica se expressa de uma forma inequívoca quando diz que o Concílio "quer transmitir a doutrina em sua pureza e integridade, sem atenuações nem deformações", e prossegue: 
 
"Nossa tarefa não é unicamente guardar este tesouro precioso, como se nos preocupássemos tão só da antigüidade, mas também dedicar-nos com vontade diligente, sem medo, a estudar o que exige nossa época (...). É necessário que esta doutrina, verdadeira e imutável, à qual se deve prestar fielmente obediência, se aprofunde e exponha segundo as exigências de nosso tempo. De fato, uma coisa é o depósito da fé, ou seja, as verdades que contém nossa venerável doutrina, e outra distinta o modo como se enunciam estas verdades, conservando contudo o mesmo sentido e significado" (Concilio ecuménico Vaticano II, Constituciones. Decretos. Declaraciones, BAC, Madrid 1993, pp. 1094-1095).

É claro que este esforço por expressar de um modo novo uma determinada verdade exige uma nova reflexão sobre ela e uma nova relação vital con ela; ainda assim, é claro que a nova palavra só pode amadurecer se nasce de uma compreensão consciente da verdade expressa e que, por outra parte, a reflexão sobre a fé exige também que se viva esta fé. Neste sentido, o programa proposto pelo Papa João XXIII era sumamente exigente, como é exigente a síntese da fidelidade e dinamismo. Mas onde esta interpretação foi a orientação que guiou a recepção do Concílio, cresceu uma nova vida e amadureceram novos frutos. Quarenta anos depois do Concílio podemos constatar que o positivo é maior e mais vivo do que pudera parecer na agitação dos anos próximos a 1968. Hoje vemos que a semente boa, apesar de desenvolver-se lentamente, cresce, e assim cresce também nossa profunda gratidão pela obra realizada pelo Concílio.
 
Paulo VI, em seu discurso durante o encerramento do Concílio, indicou também uma motivação específica pela qual uma hermenêutica da descontinuidade poderia parecer convincente. No grande debate sobre o homem, que caracteriza o tempo moderno, o Concílio devia dedicar-se de modo especial ao tema da antropologia. Devia interrogar-se sobre a relação entre a Igreja e sua fé, por uma parte, e o homem e o mundo atual, por outra (cf. ib., pp. 1173-1181). A questão resulta muito mais clara se em lugar do termo genérico “mundo atual”, elegemos outro mais preciso: o Concílio devia determinar de modo novo a relação entre a Igreja e a idade moderna.
 
Esta relação teve um início muito problemático com o processo de Galileu. Logo se rompeu totalmente quando Kant definiu a “religião dentro da razão pura” e quando, na fase radical da revolução francesa, difundiu-se uma imagem do Estado e do homem que praticamente não queria conceder espaço algum à Igreja e à fé. O enfrentamento da fé da Igreja com um liberalismo radica
l e também com umas ciências naturais que pretendiam abranger com seus conhecimentos toda a realidade até seus confins, propondo-se obstinadamente fazer supérflua a “hipótese Deus”,  havia provocado no século XIX, sob Pio IX, por parte da Igreja, ásperas e radicais condenações deste espírito da idade moderna. Assim, pois, aparentemente não havia nenhum âmbito aberto a um entendimento positivo e frutífero, e também eram drásticas as rejeições por parte dos que se sentiam representantes da idade moderna.
 
Contudo, enquanto isso, inclusive a idade moderna havia evoluído. A gente se dava conta de que a revolução americana havia oferecido um modelo de Estado moderno diferente daquele que apoiavam as tendências radicais surgidas na segunda fase da revolução francesa. As ciências naturais começavam a refletir, cada vez mais claramente, sobre seu próprio limite, imposto por seu próprio método que, embora realizasse coisas grandiosas, não era capaz de compreender a totalidade da realidade.

Assim, ambas as partes começaram a abrir-se progressivamente uma à outra. No período entre as duas guerras mundiais, e muito mais depois da segunda Guerra Mundial, homens de Estado católicos haviam demonstrado que pode existir um Estado moderno laico, que não é neutro com respeito aos valores, mas que vive bebendo das grandes fontes éticas abertas pelo cristianismo.
 
A doutrina social católica, que se foi desenvolvendo progressivamente, tinha-se convertido num modelo importante entre o liberalismo radical e a teoria marxista do Estado. As ciências naturais, que sem reservas faziam profissão de seu método, no qual Deus não tinha acesso, davam-se conta cada vez com maior clareza de que este método não abrangia a totalidade da realidade e, por tanto, abriam de novo as portas a Deus, sabendo que a realidade é maior que o método naturalista e o que este método pode abranger.

Poder-se-ia dizer que agora, na hora do Vaticano II, haviam-se formado três círculos de perguntas, que esperavam uma resposta. Antes de tudo, era necessário definir de modo novo a relação entre a fé e as ciências modernas; no mais, isso não só afetava as ciências naturais, como também a ciência histórica, porque, em certa escola, o método histórico-crítico reclamava para si a última palavra na interpretação da Bíblia e, pretendendo a exclusividade para sua compreensão das Sagradas Escrituras, opunha-se em pontos importantes à interpretação que a fé da Igreja havia elaborado.
 
Em segundo lugar, tinha que definir de modo novo a relação entre a Igreja e o Estado moderno, que concedia espaço a cidadãos de várias religiões e ideologias, comportando-se com estas religiões de modo imparcial e assumindo simplesmente a responsabilidade de uma convivência ordenada e tolerante entre os cidadãos e de sua liberdade de praticar sua religião.
 
Em terceiro lugar, com isso estava relacionado de modo mais geral o problema da tolerância religiosa, uma questão que exigia uma nova definição da relação entre a fé cristã e as religiões do mundo. Em particular, ante os recentes crimes do regime nacional socialista e, em geral, com uma olhada retrospectiva sobre uma longa história difícil, resultava necessário valorizar e definir de modo novo a relação entre a Igreja e a fé de Israel.

Todos estes temas têm um grande alcance – eram os grandes temas da segunda parte do Concílio – e não nos é possível refletir mais amplamente sobre eles neste contexto. É claro que em todos estes setores, que em seu conjunto formam um único problema, poderia emergir uma certa forma de descontinuidade e que, em certo sentido, de fato se havia manifestado uma descontinuidade, na qual, entretanto, feitas as devidas distinções entre as situações históricas concretas e suas exigências, resultava que não se havia abandonado a continuidade nos princípios; este fato facilmente escapa à primeira percepção.

Precisamente neste conjunto de continuidade e descontinuidade em diferentes níveis consiste a natureza da verdadeira reforma. Neste processo de novidade na continuidade deví
amos aprender a captar mais concretamente que antes que as decisões da Igreja relativas a coisas contingentes – por exemplo, certas formas concretas de liberalismo ou de interpretação liberal da Bíblia – necessariamente deviam ser contingentes também elas, precisamente porque se referiam a uma determinada realidade em si mesma mutável. Era necessário aprender a reconhecer que, nestas decisões, só os princípios expressam o aspecto duradouro, permanecendo no fundo e motivando a decisão desde dentro.

Ao contrário, não são igualmente permanentes as formas concretas, que dependem da situação histórica e, portanto, podem sofrer mudanças. Assim, as decisões de fundo, podem seguir sendo válidas, enquanto que as formas de sua aplicação a contextos novos podem mudar. Por exemplo, se a liberdade de religião se considera como expressão da incapacidade do homem de encontrar a verdade e, por conseguinte, transforma-se em canonização do relativismo, então passa impropriamente de necessidade social e histórica ao nível metafísico, e assim se priva-a do verdadeiro sentido, com a conseqüência de que não a pode aceitar quem crê que o homem é capaz de conhecer a verdade de Deus e está vinculado a esse conhecimento baseando-se na dignidade interior da verdade.

Pelo contrário, algo totalmente diferente é considerar a liberdade de religião como uma necessidade que deriva da convivência humana, mas ainda, como uma conseqüência intrínseca da verdade que não se pode impor de fora, senão que o homem a deve fazer sua só mediante um processo de convicção.
 
O Concílio Vaticano II, reconhecendo e fazendo seu, com o decreto sobre a liberdade religiosa, um princípio essencial do Estado moderno, recolheu de novo o patrimônio mais profundo da Igreja. Esta pode ser consciente de que com isto se encontra em plena sintonia com o ensinamento do próprio Jesus (cf. Mt 22,21), assim como a Igreja dos mártires, com os mártires de todos os tempos.
 
A Igreja antiga, com naturalidade, orava pelos imperadores e pelos responsáveis políticos, considerando isto como um dever seu (cf. 1 Tm 2,2); mas, em troca, toda vez que rezava pelos imperadores, negava-se a adorá-los, e assim recusava claramente a religião do Estado. Os mártires da Igreja primitiva morreram por sua fé no Deus que se havia revelado em Jesus Cristo, e precisamente assim morreram também pela liberdade de consciência e pela liberdade de professar a própria fé, uma profissão que nenhum Estado pode impor, mas que só pode fazer-se própria com a graça de Deus, em liberdade de consciência.

Uma Igreja missionária, consciente de que tem o dever de anunciar sua mensajem a todos os povos, necessariamente deve comprometer-se em favor da liberdade da fé. Quer transmitir o dom da verdade que existe para todos e, ao mesmo tempo, assegura aos povos e a seus governos que com isto não quer destruir sua identidade e suas culturas, mas que, ao contrário, leva-lhes uma resposta que esperam no mais íntimo de seu ser, uma resposta com a que não se perde a multiplicidade das culturas, mas que se promove a unidade entre os homens e também a paz entre os povos.

O Concílio Vaticano II, com a nova definição da relação entre a fé da Igreja e certos elementos essenciais do pensamento moderno, revisou ou inclusive corrigiu algumas decisões históricas, mas nesta aparente descontinuidade manteve e aprofundou sua íntima natureza e sua verdadeira identidade. A Igreja,  tanto antes como depois do Concílio, é a mesma Igreja una, santa, católica e apostólica a caminho através dos tempos; prossegue "sua peregrinação entre as perseguições do mundo e os consolos de Deus", anunciando a morte do Senhor até que volte (cf. Lumen gentium, 8).

Quem esperava que com este "sim" fundamental à idade moderna todas as tensões desapareceriam e a "abertura ao mundo" assim realizada transformaria tudo em pura harmonia, havia subestimado as tensões interiores
e também as contradições da mesma idade moderna; havia subestimado a perigosa fragilidade da natureza humana, que em todos os períodos da história e em toda situação histórica é uma ameaça para o caminho do homem.

Estes perigos, com as novas possibilidades e com o novo poder do homem sobre a matéria e sobre si mesmo, não hão desaparecido; ao contrário, assumem novas dimensões:  uma olhada à história atual o demonstra claramente. Também em nosso tempo, a Igreja continua sendo um "sinal de contradição" (Lc 2, 34). Não foi sem motivo que o Papa João Paulo II, sendo ainda cardeal, pôs este título aos exercícios espirituais que pregou em 1976 ao Papa Paulo VI e à Cúria romana.

O Concílio não podia ter a intenção de abolir esta contradição do Evangelho com respeito aos perigos e erros do homem. Em troca, não há dúvida de que queria eliminar contradições errôneas ou supérfluas, para apresentar ao mundo atual a exigência do Evangelho em toda sua grandeza e pureza. O passo dado pelo Concílio em direção à idade moderna, que de um modo muito impreciso se apresentou como "abertura ao mundo", pertence no último termo ao problema perene da relação entre a fé e a razão, que se torna a apresentar de formas sempre novas. A situação que o Concílio devia afrontar se pode equiparar, sem dúvida, a acontecimentos de épocas anteriores. São Pedro, em sua primeira carta, exortou os cristãos a estar sempre dispostos a dar resposta (apo-logía) a quem lhe pedisse o logos (a razão) de sua fé (cf. 1 P 3, 15). Isto significava que a fé bíblica devia entrar em discussão e em relação com a cultura grega e aprender a reconhecer mediante a interpretação da linha de distinção, mas também o contato e a afinidade entre eles na única razão dada por Deus.

Quando, no século XIII, mediante filósofos judeus e árabes, o pensamento aristotélico entrou em contato com a cristandade medieval formada na tradição platônica, e a fé e a razão corriam o perigo de entrar numa contradição inconciliável, foi sobretudo Santo Tomás de Aquino quem mediou o novo encontro entre a fé e a filosofia aristotélica, pondo assim a fé numa relação positiva com a forma de razão dominante em seu tempo.

A árdua disputa entre a razão moderna e a fé cristã que num primeiro momento, com o processo a Galileu, havia começado de modo negativo, certamente atravessou muitas fases, mas com o Concílio Vaticano II chegou a hora em que se requeria uma profunda reflexão. Desde já, nos textos conciliares seu conteúdo só está traçado em grandes linhas, mas assim se determinou a direção essencial, de forma que o diálogo entre a razão e a fé, hoje particularmente importante, encontrou sua orientação sobre a base do Vaticano II.

Agora, este diálogo se deve desenvolver com grande abertura mental, mas também com a claridade no discernimento de espíritos que o mundo, com razão, espera de nós precisamente neste momento. Assim hoje podemos voltar com gratidão nosso olhar ao Concílio Vaticano II:  se o lemos e acolhemos guiados por uma hermenêutica correta, pode ser e chegar a ser cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja.

Por último, devo recordar uma vez mais aquele 19 de abril deste ano, no qual o Colégio cardenalício, com susto meu nada pequeno, elegeu-me como sucessor do Papa João Paulo II, como sucessor de São Pedro na cátedra do Bispo de Roma? Essa tarefa estava totalmente fora do que eu tivera podido imaginar como minha vocação. Assim, só graças a um grande ato de confiança em Deus pude pronunciar com obediência meu "sim" a esta eleição. Como então, também hoje peço a todos vossas orações, com cuja força e apoio conto. Ao mesmo tempo, desejo agradecer de coração neste momento a todos os que me acolheram e me seguem acolhendo com tanta confiança, bondade e compreensão, acompanhando-me dia a dia com sua oração.

O Natal está já bem próximo. O Senhor Deus não se opôs às ameaças da história com o poder exterior, como tivéramos esperado nós os homens, segundo as perspectivas de nosso mundo. Sua arma
tem sido a bondade. Revelou-se como menino, nascido num estábulo. É precisamente assim como contrapõe seu poder, completamente diverso, às potências destrutivas da violência. Precisamente assim Ele nos salva. Precisamente assim nos mostra o que salva. Nestes dias de Natal queremos sair ao seu encontro cheios de confiança, como os pastores, como os magos do Oriente.

Peçamos a Maria que nos leve ao Senhor. Peçamos-lhe a Ele mesmo que faça brilhar seu rosto sobre nós. Peçamos-lhe que vença Ele mesmo a violência no mundo e nos faça experimentar o poder de sua bondade.

Com estes sentimentos, envio-lhes a todos de coração a benção apostólica.
 



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