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14/03/2007
Sacramentum Caritatis


Eucaristia - Sacramentum Caritatis
14/03/2007 11:00:39
Eucaristia - Sacramentum Caritatis


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
SACRAMENTUM CARITATIS
DE SUA SANTIDADE BENTO XVI
AO EPISCOPADO, AO CLERO
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A EUCARISTIA
FONTE E ÁPICE DA VIDA
E DA MISSÃO DA IGREJA


(OBS. Deixamos fora o índice e os indicativos ao final: o Original está em> www.vatican.va
Muito importante que todos leiam.)

INTRODUÇÃO

1. Sacramento da Caridade, (1) a santíssima Eucaristia é a doação que Jesus Cristo faz de
Si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem. Neste sacramento
admirável, manifesta-se o amor « maior »: o amor que leva a « dar a vida pelos amigos » (Jo
15, 13). De fato, Jesus « amou-os até ao fim » (Jo 13, 1).

Com estas palavras, o evangelista introduz o gesto de infinita humildade que Ele realizou:
na vigília da sua morte por nós na cruz, pôs uma toalha à cintura e lavou os pés aos seus
discípulos. Do mesmo modo, no sacramento eucarístico, Jesus continua a amar-nos « até ao
fim », até ao dom do seu corpo e do seu sangue. Que enlevo se deve ter apoderado do
coração dos discípulos à vista dos gestos e palavras do Senhor durante aquela Ceia! Que
maravilha deve suscitar, também no nosso coração, o mistério eucarístico!

O alimento da verdade

2. No sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem, criado à imagem e
semelhança de Deus (Gn 1, 27), fazendo-Se seu companheiro de viagem. Com efeito, neste
sacramento, Jesus torna-Se alimento para o homem, faminto de verdade e de liberdade.
Uma vez que só a verdade nos pode tornar verdadeiramente livres (Jo 8, 36), Cristo faz-Se
alimento de Verdade para nós.

Com agudo conhecimento da realidade humana, Santo Agostinho pôs em evidência como o
homem se move espontaneamente, e não constrangido, quando encontra algo que o atrai e
nele suscita desejo. Perguntando-se ele, uma vez, sobre o que poderia em última análise
mover o homem no seu íntimo, o santo bispo exclama: « Que pode a alma desejar mais
ardentemente do que a verdade? » (2) De fato, todo o homem traz dentro de si o desejo
insuprimível da verdade última e definitiva. Por isso, o Senhor Jesus, « caminho, verdade e
vida » (Jo 14, 6), dirige-Se ao coração anelante do homem que se sente peregrino e sedento,
ao coração que suspira pela fonte da vida, ao coração mendigo da Verdade. Com efeito,
Jesus Cristo é a Verdade feita Pessoa, que atrai a Si o mundo. « Jesus é a estrela polar da
liberdade humana: esta, sem Ele, perde a sua orientação, porque, sem o conhecimento da
verdade, a liberdade desvirtua-se, isola-se e reduz-se a estéril arbítrio. Com Ele, a liberdade
volta a encontrar-se a si mesma ».(3) No sacramento da Eucaristia, Jesus mostra-nos de
modo particular a verdade do amor, que é a própria essência de Deus. Esta é a verdade
evangélica que interessa a todo o homem e ao homem todo. Por isso a Igreja, que encontra
na Eucaristia o seu centro vital, esforça-se constantemente por anunciar a todos, em tempo
propício e fora dele (opportune, importune: cf. 2 Tm 4, 2), que Deus é amor.(4) Exatamente
porque Cristo Se fez alimento de Verdade para nós, a Igreja dirige-se ao homem convidando-
o a acolher livremente o dom de Deus.

O desenvolvimento do rito eucarístico

3. Contemplando a história bimilenária da Igreja de Deus, sapientemente guiada pela ação
do Espírito Santo, admiramos cheios de gratidão o desenvolvimento ordenado no tempo das
formas rituais em que fazemos memória do acontecimento da nossa salvação. Desde as
múltiplas formas dos primeiros séculos, que resplandecem ainda nos ritos das Antigas
Igrejas do Oriente, até à difusão do rito romano; desde as indicações claras do Concílio de
Trento e do Missal de São Pio V até à renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II:

em cada etapa da história da Igreja, a celebração eucarística, enquanto fonte e ápice da sua
vida e missão, resplandece no rito litúrgico em toda a sua multiforme riqueza. A XI
Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu de 2 a 23 de Outubro de
2005 no Vaticano, elevou um profundo agradecimento a Deus por esta história,
reconhecendo nela a guia ativa do Espírito Santo. De modo particular, os padres sinodais
reconheceram e reafirmaram o benéfico influxo que teve, na vida da Igreja, a reforma
litúrgica atuada a partir do Concílio Ecumênico Vaticano II.(5) O Sínodo dos Bispos pôde
avaliar o acolhimento que a mesma teve depois da assembléia conciliar; inúmeros foram os
elogios; como lá se disse, as dificuldades e alguns abusos assinalados não podem ofuscar a
excelência e a validade da referida renovação litúrgica, que contém riquezas ainda não
plenamente exploradas. Trata-se, em concreto, de ler as mudanças queridas pelo Concílio
dentro da unidade que caráteriza o desenvolvimento histórico do próprio rito, sem introduzir
artificiosas rupturas.(6)

O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia

4. Além disso, é necessário sublinhar a relação do recente Sínodo dos Bispos sobre a
Eucaristia com o que sucedeu durante os últimos anos na vida da Igreja. Antes de mais,
devemos pensar no Grande Jubileu do ano 2000, com o qual meu amado predecessor, o
servo de Deus João Paulo II, introduziu a Igreja no terceiro milênio cristão; o Ano Jubilar
teve, sem dúvida, uma caráterização intensamente eucarística.

Depois, não se pode esquecer que o Sínodo dos Bispos foi precedido e, em certo sentido,
preparado também pelo Ano da Eucaristia, estabelecido com grande clarividência por João
Paulo II para toda a Igreja; teve início com o Congresso Eucarístico Internacional em
Guadalajara no mês de Outubro de 2004 e terminou a 23 de Outubro de 2005, no final da
XI Assembléia Sinodal, com a canonização de cinco beatos que se distinguiram, de forma
particular, pela sua piedade eucarística: o bispo José Bilczewski, os sacerdotes Caetano
Catanoso, Sigismundo Gorazdowski e Alberto Hurtado Cruchaga, e o religioso capuchinho
Félix de Nicósia. Graças aos ensinamentos propostos por João Paulo II na Carta Apostólica
Mane nobiscum Domine (7) e às preciosas sugestões da Congregação para o Culto Divino e
a Disciplina dos Sacramentos,(8) numerosas foram as iniciativas que as dioceses e as
diversas realidades eclesiais empreenderam para despertar e aumentar nos crentes a fé
eucarística, para melhorar o cuidado das celebrações e promover a adoração eucarística,
para encorajar uma real solidariedade que, partindo da Eucaristia, atingisse os
necessitados. Por último, é preciso mencionar a importância da última Encíclica do meu
venerado predecessor, a Ecclesia de Eucharistia,(9) deixando-nos através dela uma segura
referência do Magistério quanto à doutrina eucarística e um derradeiro testemunho do lugar
central que este sacramento divino ocupava na sua vida.

Finalidade do documento

5. Esta Exortação Apostólica pós-sinodal tem por objetivo recolher a multiforme riqueza de
reflexões e propostas surgidas na recente Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos
— a começar dos Lineamenta até às Propositiones, passando pelo Instrumentum laboris, as
Relationes ante et post disceptationem, as intervenções dos padres sinodais, auditores e
delegados fraternos —, com a intenção de explicitar algumas linhas fundamentais de
empenho tendentes a despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarístico.

Consciente do vasto patrimônio doutrinal e disciplinar acumulado no decurso dos séculos à
volta da Eucaristia,(10) neste documento desejo sobretudo recomendar, acolhendo o voto
dos padres sinodais,(11) que o povo cristão aprofunde a relação entre o mistério eucarístico,
a ação litúrgica e o novo culto espiritual que deriva da Eucaristia enquanto sacrament
o da
caridade. Com esta perspectiva, pretendo colocar esta Exortação na linha da minha
primeira Carta Encíclica — a Deus caritas est —, na qual várias vezes falei do sacramento
da Eucaristia pondo em evidência a sua relação com o amor cristão, tanto para com Deus
como para com o próximo: « O Deus encarnado atrai-nos todos a Si. Assim se compreende
por que motivo o termo ágape se tenha tornado também um nome da Eucaristia; nesta, a
ágape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua ação em nós e através de nós
».(12)

I PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO ACREDITADO


« A obra de Deus consiste em acreditar n'Aquele que Ele enviou » (Jo 6, 29)

A fé eucarística da Igreja
6. « Mistério da fé! »: com esta exclamação pronunciada logo a seguir às palavras da
consagração, o sacerdote proclama o mistério celebrado e manifesta o seu enlevo diante da
conversão substancial do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor Jesus, realidade
esta que ultrapassa toda a compreensão humana. Com efeito, a Eucaristia é por excelência «
mistério da fé »: « É o resumo e a súmula da nossa fé ».(13) A fé da Igreja é essencialmente fé
eucarística e alimenta-se, de modo particular, à mesa da Eucaristia. A fé e os sacramentos
são dois aspectos complementares da vida eclesial.

Suscitada pelo anúncio da palavra de Deus, a fé é alimentada e cresce no encontro com a
graça do Senhor ressuscitado que se realiza nos sacramentos: « A fé exprime-se no rito e
este revigora e fortifica a fé ».(14) Por isso, o sacramento do altar está sempre no centro da
vida eclesial; « graças à Eucaristia, a Igreja renasce sempre de novo! » (15) Quanto mais viva
for a fé eucarística no povo de Deus, tanto mais profunda será a sua participação na vida
eclesial por meio duma adesão convicta à missão que Cristo confiou aos seus discípulos.
Testemunha-o a própria história da Igreja: toda a grande reforma está, de algum modo,
ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo.

Santíssima Trindade e Eucaristia

O pão descido do céu


7. O primeiro conteúdo da fé eucarística é o próprio mistério de Deus, amor trinitário. No
diálogo de Jesus com Nicodemos, encontramos uma afirmação esclarecedora a tal respeito: «
Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que
acredita n'Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao
mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele » (Jo 3, 16-17).
Estas palavras revelam a raiz última do dom de Deus. Na Eucaristia, Jesus não dá « alguma
coisa », mas dá-Se a Si mesmo; entrega o seu corpo e derrama o seu sangue. Deste modo dá
a totalidade da sua própria vida, manifestando a fonte originária deste amor: Ele é o Filho
eterno que o Pai entregou por nós. Noutro passo do evangelho, depois de Jesus ter saciado a
multidão pela multiplicação dos pães e dos peixes, ouvimo-Lo dizer aos interlocutores que
vieram atrás d'Ele até à sinagoga de Cafarnaum: « Meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão
que vem do céu. O pão de Deus é o que desce do céu para dar a vida ao mundo » (Jo 6, 32-
33), acabando por identificar-Se Ele mesmo — a sua própria carne e o seu próprio sangue —
com aquele pão: « Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá
eternamente. E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo »
(Jo 6, 51). Assim Jesus manifesta-Se como o pão da vida que o Pai eterno dá aos homens.

Dom gratuito da Santíssima Trindade

8. Na Eucaristia, revela-se o desígnio de amor que guia toda a história da salvação (Ef 1, 9-
10; 3, 8-11). Nela, o Deus-Trindade (Deus Trinitas), que em Si mesmo é amor (1 Jo 4, 7-8),
envolve-Se plenamente com a nossa condição humana. No pão e no vinho, sob cujas
aparências Cristo Se nos dá na ceia pascal (Lc 22, 14-20; 1 Cor 11, 23-26), é toda a vida r>divina que nos alcança e se comunica a nós na forma do sacramento: Deus é comunhão
perfeita de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Já na criação, o homem fora
chamado a partilhar, em certa medida, o sopro vital de Deus (Gn 2, 7). Mas, é em Cristo
morto e ressuscitado e na efusão do Espírito Santo, dado sem medida (Jo 3, 34), que nos
tornamos participantes da intimidade divina.(16) Assim Jesus Cristo, que « pelo Espírito
eterno Se ofereceu a Deus como vítima sem mancha » (Heb 9, 14), no dom eucarístico
comunica-nos a própria vida divina. Trata-se de um dom absolutamente gratuito, devido
apenas às promessas de Deus cumpridas para além de toda e qualquer medida. A Igreja
acolhe, celebra e adora este dom, com fiel obediência. O « mistério da fé » é mistério de amor
trinitário, no qual, por graça, somos chamados a participar. Por isso, também nós devemos
exclamar com Santo Agostinho: « Se vês a caridade, vês a Trindade ».(17)

Eucaristia: Jesus verdadeiro Cordeiro imolado

A nova e eterna aliança no sangue do Cordeiro

9. A missão, que trouxe Jesus entre nós, atinge o seu cumprimento no mistério pascal. Do
alto da cruz, donde atrai todos a Si (Jo 12, 32), antes de « entregar o Espírito » Jesus diz: «
Tudo está consumado » (Jo 19, 30). No mistério da sua obediência até à morte, e morte de
cruz (Fil 2, 8), cumpriu-se a nova e eterna aliança. Na sua carne crucificada, a liberdade de
Deus e a liberdade do homem juntaram-se definitivamente num pato indissolúvel, válido
para sempre. Também o pecado do homem ficou expiado, uma vez por todas, pelo Filho de
Deus (Heb 7, 27; 1 Jo 2, 2; 4, 10). Como já tive ocasião de afirmar, « na sua morte de cruz,
cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para
levantar o homem e salvá-lo — o amor na sua forma mais radical ».(18) No mistério pascal,
realizou-se verdadeiramente a nossa libertação do mal e da morte. Na instituição da
Eucaristia, o próprio Jesus falara da « nova e eterna aliança », estipulada no seu sangue
derramado (Mt 26, 28; Mc 14, 24; Lc 22, 20). Esta finalidade última da sua missão era bem
evidente já no início da sua vida pública; de fato, nas margens do Jordão, quando João
Baptista vê Jesus vir ter com ele, exclama: « Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do
mundo » (Jo 1, 29). É significativo que a mesma expressão apareça, sempre que celebramos
a Santa Missa, no convite do sacerdote para nos abeirarmos do altar: « Felizes os convidados
para a ceia do Senhor. Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo ». Jesus é o
verdadeiro cordeiro pascal, que Se ofereceu espontaneamente a Si mesmo em sacrifício por
nós, realizando assim a nova e eterna aliança. A Eucaristia contém nela esta novidade
radical, que nos é oferecida em cada celebração.(19)

A instituição da Eucaristia

10. Deste modo, a nossa reflexão foi deter-se na instituição da Eucaristia durante a Última
Ceia. O fato teve lugar no âmbito duma ceia ritual, que constituía o memorial do
acontecimento fundador do povo de Israel: a libertação da escravidão do Egipto. Esta ceia
ritual, associada com a imolação dos cordeiros (Ex 12, 1-28. 43-51), era memória do
passado, mas ao mesmo tempo também memória profética, ou seja, anúncio duma
libertação futura; de fato, o povo experimentara que aquela libertação não tinha sido
definitiva, pois a sua história ainda estava demasiadamente marcada pela escravidão e pelo
pecado. O memorial da antiga libertação abria-se, assim, à súplica e ao anseio por uma
salvação mais profunda, radical, universal e definitiva. É neste contexto que Jesus introduz
a novidade do seu dom; na oração de louvor — a Berakah —, Ele dá graças ao Pai não só
pelos grandes acontecimentos da história passada, mas também pela sua própria «
exaltação ». Ao instituir o sacramento da Eucaristia, Jesus antecipa e implica o sacrifício da
cruz e a vitória da ressurre
ição; ao mesmo tempo, revela-Se como o verdadeiro cordeiro
imolado, previsto no desígnio do Pai desde a fundação do mundo, como se lê na I Carta de
Pedro (1, 18-20). Ao colocar o dom de Si mesmo neste contexto, Jesus manifesta o sentido
salvífico da sua morte e ressurreição, mistério este que se torna uma realidade renovadora
da história e do mundo inteiro. Com efeito, a instituição da Eucaristia mostra como aquela
morte, de per si violenta e absurda, se tenha tornado, em Jesus, ato supremo de amor e
libertação definitiva da humanidade do mal.

A figura deu lugar à Verdade

11. Como vimos, Jesus insere a sua novidade (novum) radical no âmbito da antiga ceia
sacrificial hebraica. Uma tal ceia, nós, cristãos, já não temos necessidade de a repetir. Como
justamente dizem os Padres, figura transit in veritatem: aquilo que anunciava as realidades
futuras cedeu agora o lugar à própria Verdade. O antigo rito consumou-se e ficou
definitivamente superado mediante o dom de amor do Filho de Deus encarnado. O alimento
da verdade, Cristo imolado por nós, pôs termo às figuras (dat figuris terminum).(20) Com a
sua ordem « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 25), pede-nos para
corresponder ao seu dom e representá-Lo sacramentalmente; com tais palavras, o Senhor
manifesta, por assim dizer, a esperança de que a Igreja, nascida do seu sacrifício, acolha
este dom desenvolvendo, sob a guia do Espírito Santo, a forma litúrgica do sacramento. De
fato, o memorial do seu dom perfeito não consiste na simples repetição da Última Ceia, mas
propriamente na Eucaristia, ou seja, na novidade radical do culto cristão. Assim Jesus
deixou-nos a missão de entrar na sua « hora »: « A Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de
Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos
na dinâmica da sua doação ».(21) Ele « arrasta-nos para dentro de Si ».(22) A conversão
substancial do pão e do vinho no seu corpo e no seu sangue insere dentro da criação o
princípio duma mudança radical, como uma espécie de « fissão nuclear » (para utilizar uma
imagem hoje bem conhecida de todos nós), verificada no mais íntimo do ser; uma mudança
destinada a suscitar um processo de transformação da realidade, cujo termo último é a
transfiguração do mundo inteiro, até chegar àquela condição em que Deus seja tudo em
todos (1 Cor 15, 28).

O Espírito Santo e a Eucaristia

Jesus e o Espírito Santo


12. Com a sua palavra e com o pão e o vinho, o próprio Senhor nos ofereceu os elementos
essenciais do culto novo. A Igreja, sua Esposa, é chamada a celebrar o banquete eucarístico
dia após dia em memória d'Ele. Deste modo, ela insere o sacrifício redentor do seu Esposo
na história dos homens e torna-o sacramentalmente presente em todas as culturas. Este
grande mistério é celebrado nas formas litúrgicas que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo,
desenvolve no tempo e no espaço.(23) A propósito, é necessário despertar em nós a
consciência da função decisiva que exerce o Espírito Santo no desenvolvimento da forma
litúrgica e no aprofundamento dos mistérios divinos. O Paráclito, primeiro dom concedido
aos crentes,(24) ativo já na criação (Gn 1, 2), está presente em plenitude na vida inteira do
Verbo encarnado: com efeito, Jesus Cristo é concebido no seio da Virgem Maria por obra do
Espírito Santo (Mt 1, 18; Lc 1, 35); no início da sua missão pública, nas margens do Jordão,
vê-O descer sobre Si em forma de pomba (Mt 3, 16 e par.); neste mesmo Espírito, age, fala e
exulta (Lc 10, 21); e é n'Ele que Jesus pode oferecer-Se a Si mesmo (Heb 9, 14). No chamado
« discurso de despedida » referido por João, Jesus põe claramente em relação o dom da sua
vida no mistério pascal com o dom do Espírito aos Seus (Jo 16, 7). Depois de ressuscitado,
trazendo na sua carne os sinais da paixão, pode derramar o Espírito (Jo 20, 22), tornando
os seus discípulos
participantes da mesma missão d'Ele (Jo 20, 21). Em seguida, será o
Espírito que ensina aos discípulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo tinha
dito (Jo 14, 26), porque compete a Ele, enquanto Espírito da verdade (Jo 15, 26), introduzir
os discípulos na verdade total (Jo 16, 13). Segundo narram os Atos, o Espírito desce sobre
os Apóstolos reunidos em oração com Maria no dia de Pentecostes (2, 1-4), e impele-os para
a missão de anunciar a boa nova a todos os povos. Portanto, é em virtude da ação do
Espírito que o próprio Cristo continua presente e ativo na sua Igreja, a partir do seu centro
vital que é a Eucaristia.

Espírito Santo e celebração eucarística

13. Neste horizonte, compreende-se a função decisiva que tem o Espírito Santo na
celebração eucarística e, de modo particular, no que se refere à transubstanciação. É fácil
de comprovar a consciência disto mesmo nos Padres da Igreja; nas suas Catequeses, São
Cirilo de Jerusalém recorda que « invocamos Deus misericordioso para que envie o seu
Santo Espírito sobre as oblações que apresentamos a fim de Ele transformar o pão em corpo
de Cristo e o vinho em sangue de Cristo. O que o Espírito Santo toca, é santificado e
transformado totalmente ».(25) Também São João Crisóstomo assinala que o sacerdote
invoca o Espírito Santo quando celebra o Sacrifício: (26) à semelhança de Elias, o ministro
atrai o Espírito Santo para que, « descendo a graça sobre a vítima, se incendeiem por meio
dela as almas de todos ».(27) É extremamente necessária, para a vida espiritual dos fiéis,
uma consciência mais clara da riqueza da anáfora: esta, juntamente com as palavras
pronunciadas por Cristo na Última Ceia, contém a epiclese, que é invocação ao Pai para que
faça descer o dom do Espírito a fim de o pão e o vinho se tornarem o corpo e o sangue de
Jesus Cristo, e para que « a comunidade inteira se torne cada vez mais corpo de Cristo ».(28)
O Espírito, invocado pelo celebrante sobre os dons do pão e do vinho colocados sobre o
altar, é o mesmo que reúne os fiéis « num só corpo », tornando-os uma oferta espiritual
agradável ao Pai.(29)

Eucaristia e Igreja

Eucaristia, princípio causal da Igreja


14. Através do sacramento eucarístico, Jesus compromete os fiéis na sua própria « hora »;
mostra-nos assim a ligação que quis entre Ele mesmo e nós, entre a sua pessoa e a Igreja.
De fato, o próprio Cristo, no sacrifício da cruz, gerou a Igreja como sua esposa e seu corpo.
Os Padres da Igreja meditaram longamente sobre a semelhança que há entre a origem de
Eva do lado de Adão adormecido (Gn 2, 21-23) e a da nova Eva, a Igreja, do lado aberto de
Cristo mergulhado no sono da morte: do seu lado trespassado — narra João — saiu sangue
e água (Jo 19, 34), símbolo dos sacramentos.(30) Um olhar contemplativo para « Aquele que
trespassaram » (Jo 19, 37) leva-nos a considerar a ligação causal entre o sacrifício de Cristo,
a Eucaristia e a Igreja. Com efeito, esta « vive da Eucaristia ».(31) Uma vez que nela se torna
presente o sacrifício redentor de Cristo, temos de reconhecer antes de mais que « existe um
influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja ».(32) A Eucaristia é Cristo que
Se dá a nós, edificando-nos continuamente como seu corpo. Portanto, na sugestiva
circularidade entre a Eucaristia que edifica a Igreja e a própria Igreja que faz a
Eucaristia,(33) a causalidade primária está expressa na primeira fórmula: a Igreja pode
celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na Eucaristia, precisamente porque o próprio
Cristo Se deu primeiro a ela no sacrifício da Cruz. A possibilidade que a Igreja tem de « fazer
» a Eucaristia está radicada totalmente na doação que Jesus lhe fez de Si mesmo. Também
este aspecto nos persuade de quão verdadeira seja a frase de São João: « Ele amou-nos
primeiro » (1 Jo 4, 19). Deste modo, também nós confessamos, em cada celebração, o
primado
do dom de Cristo; o influxo causal da Eucaristia, que está na origem da Igreja,
revela em última análise a precedência não só cronológica mas também ontológica do amor
de Jesus relativamente ao nosso: será, por toda a eternidade, Aquele que nos ama primeiro.

Eucaristia e comunhão eclesial

15. A Eucaristia é, pois, constitutiva do ser e do agir da Igreja. Por isso, a antiguidade cristã
designava com as mesmas palavras — corpus Christi — o corpo nascido da Virgem Maria, o
corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo.(34) Bem atestado na tradição, este dado faz
crescer em nós a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. Oferecendo-Se a Si
mesmo em sacrifício por nós, o Senhor Jesus preanunciou de modo eficaz no seu dom o
mistério da Igreja. É significativo o modo como a Oração Eucarística II, ao invocar o
Paráclito, formula a prece pela unidade da Igreja:
« ... participando no corpo e sangue de Cristo, sejamos reunidos, pelo Espírito Santo, num
só corpo ». Esta passagem ajuda a compreender como a eficácia (res) do sacramento
eucarístico seja a unidade dos fiéis na comunhão eclesial. Assim, a Eucaristia aparece na
raiz da Igreja como mistério de comunhão.(35)
O servo de Deus João Paulo II, na sua Encíclica Ecclesia de Eucharistia, tinha já chamado a
atenção para a relação entre Eucaristia e communio: falou do memorial de Cristo como
sendo a « suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja ».(36) A unidade da
comunhão eclesial revela-se, concretamente, nas comunidades cristãs e renova-se no ato
eucarístico que as une e diferencia em Igrejas particulares, « in quibus et ex quibus una et
unica Ecclesia catholica exsistit – nas quais e pelas quais existe a Igreja Católica, una e
única ».(37) É precisamente a realidade da única Eucaristia celebrada em cada diocese ao
redor do respectivo Bispo que nos faz compreender como as próprias Igrejas particulares
subsistam in e ex Ecclesia. De fato, « a unicidade e indivisibilidade do corpo eucarístico do
Senhor implicam a unicidade do seu corpo místico, que é a Igreja una e indivisível. Do
centro eucarístico surge a necessária abertura de cada comunidade celebrante, de cada
Igreja particular: ao deixar-se atrair pelos braços abertos do Senhor, consegue-se a inserção
no seu corpo, único e indiviso ».(38) Por este motivo, na celebração da Eucaristia, cada fiel
encontra-se na sua Igreja, isto é, na Igreja de Cristo. Nesta perspectiva eucarística,
adequadamente entendida, a comunhão eclesial revela-se realidade católica por sua
natureza.(39) O fato de sublinhar esta raiz eucarística da comunhão eclesial pode contribuir
eficazmente também para o diálogo ecumênico com as Igrejas e com as Comunidades
eclesiais que não estão em plena comunhão com a Sé de Pedro. Na realidade, a Eucaristia
estabelece objetivamente um forte vínculo de unidade entre a Igreja Católica e as Igrejas
Ortodoxas, que conservaram genuína e integralmente a natureza do mistério da Eucaristia.
Ao mesmo tempo, a relevância dada ao caráter eclesial da Eucaristia pode tornar-se
elemento privilegiado também no diálogo com as Comunidades nascidas da Reforma.(40)

Eucaristia e Sacramentos

Sacramentalidade da Igreja


16. O Concílio Vaticano II lembrou que « os restantes sacramentos, assim como todos os
ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e
a ela se ordenam. Com efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro
espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens
a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo: assim são eles
convidados e levados a oferecer, juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e
todas as coisas criadas ».(41) Esta relação íntima da Eucaristia com os demais sacramentos
e com a existência cristã compreende-se, na sua raiz, quando se contempla
o mistério da
própria Igreja como sacramento.(42) A este respeito, o referido Concílio afirmou que « a
Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com
Deus e da unidade de todo o género humano ».(43) Ela, enquanto « povo — como diz São
Cipriano — reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo »,(44) é sacramento da
comunhão trinitária.

O fato de a Igreja ser « universal sacramento da salvação »(45) mostra que a « economia »
sacramental determina, em última análise, o modo como Jesus Cristo único Salvador, por
meio do Espírito, alcança a nossa vida na especificidade das suas circunstâncias. A Igreja
recebe-se e simultaneamente exprime-se nos sete sacramentos, pelos quais a graça de Deus
influencia concretamente a existência dos fiéis para que toda a sua vida, redimida por
Cristo, se torne culto agradável a Deus. Nesta perspectiva, desejo sublinhar aqui alguns
elementos, assinalados pelos padres sinodais, que podem ajudar a identificar a relação dos
diversos sacramentos com o mistério eucarístico.

I. Eucaristia e iniciação cristã

Eucaristia, plenitude da iniciação cristã


17. Se verdadeiramente a Eucaristia é fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, temos de
concluir antes de mais que o caminho de iniciação cristã tem como ponto de referência
tornar possível o acesso a tal sacramento. A propósito, devemos interrogar-nos — como
sugeriram os padres sinodais — se as nossas comunidades cristãs têm suficiente noção do
vínculo estreito que há entre Batismo, Confirmação e Eucaristia; (46) de fato, é preciso não
esquecer jamais que somos batizados e crismados em ordem à Eucaristia. Este dado implica
o compromisso de favorecer na ação pastoral uma compreensão mais unitária do percurso
de iniciação cristã. O sacramento do Batismo, pelo qual somos configurados a Cristo, (47)
incorporados na Igreja e feitos filhos de Deus, constitui a porta de acesso a todos os
sacramentos; através dele, somos inseridos no único corpo de Cristo (1 Cor 12, 13), povo
sacerdotal. Mas é a participação no sacrifício eucarístico que aperfeiçoa, em nós, o que
recebemos no Batismo. Também os dons do Espírito são concedidos para a edificação do
corpo de Cristo (1 Cor 12) e o crescimento do testemunho evangélico no mundo.(48)
Portanto, a santíssima Eucaristia leva à plenitude a iniciação cristã e coloca-se como centro
e termo de toda a vida sacramental.(49)

A ordem dos sacramentos da iniciação

18. A este respeito, é necessário prestar atenção ao tema da ordem dos sacramentos da
iniciação. Na Igreja, há tradições diferentes; esta diversidade é patente nos costumes
eclesiais do Oriente (50) e na prática ocidental para a iniciação dos adultos,(51) se
comparada com a das crianças.(52) Contudo, tais diferenças não são propriamente de
ordem dogmática, mas de caráter pastoral. Em concreto, é necessário verificar qual seja a
prática que melhor pode, efectivamente, ajudar os fiéis a colocarem no centro o sacramento
da Eucaristia, como realidade para qual tende toda a iniciação; em estreita colaboração com
os Dicastérios competentes da Cúria Romana, as Conferências Episcopais verifiquem a
eficácia dos percursos de iniciação actuais, para que o cristão seja ajudado, pela ação
educativa das nossas comunidades, a maturar cada vez mais até chegar a assumir na sua
vida uma orientação autenticamente eucarística, de tal modo que seja capaz de dar razão da
própria esperança de maneira adequada ao nosso tempo (1 Pd 3, 15).

Iniciação, comunidade eclesial e família

19. É preciso ter sempre presente que toda a iniciação cristã é caminho de conversão que
há-de ser realizada com a ajuda de Deus e em constante referimento à comunidade eclesial,
quer quando é o adulto que pede para entrar na Igreja, como acontece nos lugares de
primeira evangelização e em muitas zonas secularizadas, quer quando são
os pais a pedir os
sacramentos para seus filhos. A este respeito, desejo chamar a atenção sobretudo para a
relação entre iniciação cristã e família; na ação pastoral, sempre se deve associar a família
cristã ao itinerário de iniciação. Receber o Batismo, a Confirmação e abeirar-se pela
primeira vez da Eucaristia são momentos decisivos não só para a pessoa que os recebe mas
também para toda a sua família; esta deve ser sustentada, na sua tarefa educativa, pela
comunidade eclesial em suas diversas componentes.(53) Quero sublinhar aqui a relevância
da Primeira Comunhão; para inúmeros fiéis, este dia permanece, justamente, gravado na
memória como o primeiro momento em que se percebeu, embora de forma ainda inicial, a
importância do encontro pessoal com Jesus. A pastoral paroquial deve valorizar
adequadamente esta ocasião tão significativa.

II. Eucaristia e sacramento da Reconciliação

Sua ligação intrínseca


20. Os padres sinodais afirmaram, justamente, que o amor à Eucaristia leva a apreciar cada
vez mais também o sacramento da Reconciliação.(54) Por causa da ligação entre ambos os
sacramentos, uma catequese autêntica acerca do sentido da Eucaristia não pode ser
separada da proposta dum caminho penitencial (1 Cor 11, 27-29). Constatamos — é certo —
que, no nosso tempo, os fiéis se encontram imersos numa cultura que tende a cancelar o
sentido do pecado, (55) favorecendo um estado de espírito superficial que leva a esquecer a
necessidade de estar na graça de Deus para se aproximar dignamente da comunhão
sacramental.(56) Na realidade, a perda da consciência do pecado engloba sempre também
uma certa superficialidade na compreensão do próprio amor de Deus. É muito útil para os
fiéis recordar-lhes os elementos que, no rito da Santa Missa, explicitam a consciência do
próprio pecado e, simultaneamente, da misericórdia de Deus.(57) Além disso, a relação
entre a Eucaristia e a Reconciliação recorda-nos que o pecado nunca é uma realidade
exclusivamente individual, mas inclui sempre também uma ferida no seio da comunhão
eclesial, na qual nos encontramos inseridos pelo Batismo. Por isso, como diziam os Padres
da Igreja, a Reconciliação é um Batismo laborioso (laboriosus quidam baptismus),(58)
sublinhando assim que o resultado do caminho de conversão é também o restabelecimento
da plena comunhão eclesial, que se exprime no abeirar-se novamente da Eucaristia.(59)

Alguns cuidados pastorais

21. O Sínodo lembrou que é dever pastoral do bispo promover na sua diocese uma decisiva
recuperação da pedagogia da conversão que nasce da Eucaristia e favorecer entre os fiéis a
confissão freqüente. Todos os sacerdotes se dediquem com generosidade, empenho e
competência à administração do sacramento da Reconciliação.(60) A propósito, procure-se
que, nas nossas igrejas, os confessionários sejam bem visíveis e expressivos do significado
deste sacramento. Peço aos pastores que vigiem atentamente sobre a celebração do
sacramento da Reconciliação, limitando a prática da absolvição geral exclusivamente aos
casos previstos,(61) permanecendo como forma ordinária de absolvição apenas a
pessoal.(62) Vista a necessidade de descobrir novamente o perdão sacramental, haja em
todas as dioceses o Penitenciário.(63) Por último, pode servir de válida ajuda para a nova
tomada de consciência desta relação entre a Eucaristia e a Reconciliação uma prática
equilibrada e conscienciosa da indulgência, lucrada a favor de si mesmo ou dos defuntos.
Com ela, obtém-se « a remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados, cuja
culpa já foi apagada ».(64) O uso das indulgências ajuda-nos a compreender que não somos
capazes, só com as nossas forças, de reparar o mal cometido e que os pecados de cada um
causam dano a toda a comunidade; além disso, a prática da indulgência, implicando a
doutrina dos méritos infinitos de Cristo bem como a da comunhão dos santos, mo
stra-nos «
quanto estejamos, em Cristo, intimamente unidos uns aos outros e quanto a vida
sobrenatural de cada um possa aproveitar aos outros ».(65) Dado que a forma própria da
indulgência prevê, entre as condições requeridas, o abeirar-se da confissão e da comunhão
sacramental, a sua prática pode sustentar eficazmente os fiéis no caminho da conversão e
na descoberta da centralidade da Eucaristia na vida cristã.

III. Eucaristia e Unção dos Enfermos

22. Jesus não Se limitou a enviar os seus discípulos a curar os doentes (Mt 10, 8; Lc 9, 2;
10, 9), mas instituiu para eles também um sacramento específico: a Unção dos
Enfermos.(66) A Carta de Tiago testemunha a presença deste gesto sacramental já na
primitiva comunidade cristã (5, 14-16). Se a Eucaristia mostra como os sofrimentos e a
morte de Cristo foram transformados em amor, a Unção dos Enfermos, por seu lado, associa
o doente à oferta que Cristo fez de Si mesmo pela salvação de todos, de tal modo que possa
também ele, no mistério da comunhão dos santos, participar na redenção do mundo. A
relação entre ambos os sacramentos aparece ainda mais clara quando se agrava a doença: «
Àqueles que vão deixar esta vida, a Igreja oferece-lhes, além da Unção dos Enfermos, a
Eucaristia como viático ».(67) Nesta passagem para o Pai, a comunhão no corpo e sangue de
Cristo aparece como semente de vida eterna e força de ressurreição: « Quem come a minha
carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia » (Jo 6, 54).
Uma vez que o sagrado Viático desvenda ao doente a plenitude do mistério pascal, é preciso
assegurar a sua administração.(68) A atenção e o cuidado pastoral por aqueles que se
encontram doentes redunda, seguramente, em benefício espiritual de toda a comunidade,
sabendo que tudo o que fizermos ao mais pequenino, ao próprio Jesus o faremos (Mt 25,
40).

IV. Eucaristia e sacramento da Ordem

Na pessoa de Cristo cabeça


23. O vínculo intrínseco entre a Eucaristia e o sacramento da Ordem deduz-se das próprias
palavras de Jesus no Cenáculo: « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19). De fato, na
vigília da sua morte, Ele instituiu a Eucaristia e ao mesmo tempo fundou o sacerdócio da
Nova Aliança. Jesus é sacerdote, vítima e altar: mediador entre Deus Pai e o povo (Heb 5, 5-
10), vítima de expiação (1 Jo 2, 2; 4, 10) que Se oferece a Si mesma no altar da cruz.
Ninguém pode dizer « isto é o meu corpo » e « este é o cálice do meu sangue » senão em nome
e na pessoa de Cristo, único sumo sacerdote da nova e eterna Aliança (Heb 8-9). O Sínodo
dos Bispos já se ocupara, noutras assembléias, do sacerdócio ordenado tanto no que diz
respeito à identidade do ministério,(69) como à formação dos candidatos.(70) Na presente
circunstância importa-me, à luz do diálogo realizado no âmbito da última assembléia
sinodal, sublinhar alguns valores que têm a ver com a relação entre o sacramento
eucarístico e a Ordem. Antes de mais nada, é necessário reafirmar que a ligação entre a
Ordem sacra e a Eucaristia é visível precisamente na Missa que o bispo ou o presbítero
preside na pessoa de Cristo cabeça (in persona Christi capitis).

A doutrina da Igreja considera a ordenação sacerdotal condição indispensável para a
celebração válida da Eucaristia.(71) De fato, « no serviço eclesial do ministro ordenado, é o
próprio Cristo que está presente à sua Igreja, como cabeça do seu corpo, pastor do seu
rebanho, sumo sacerdote do sacrifício redentor ».(72) Certamente o ministro ordenado « age
também em nome de toda a Igreja, quando apresenta a Deus a oração da mesma Igreja e,
sobretudo, quando oferece o sacrifício eucarístico ».(73) Por isso, é necessário que os
sacerdotes tenham consciência de que, em todo o seu ministério, nunca devem colocar em
primeiro plano a sua pessoa nem as suas opiniões, mas Jesus Cristo. Contradiz a
identidade sacerdotal toda a tentativa de se c
olocarem a si mesmos como protagonistas da
ação litúrgica. Aqui, mais do que nunca, o sacerdote é servo e deve continuamente
empenhar-se por ser sinal que, como dócil instrumento nas mãos de Cristo, aponta para
Ele. Isto exprime-se de modo particular na humildade com que o sacerdote conduz a ação
litúrgica, obedecendo ao rito, aderindo ao mesmo com o coração e a mente, evitando tudo o
que possa dar a sensação de um seu inoportuno protagonismo. Recomendo, pois, ao clero
que não cesse de aprofundar a consciência do seu ministério eucarístico como um serviço
humilde a Cristo e à sua Igreja. O sacerdócio, como dizia Santo Agostinho, é um serviço de
amor (amoris officium),(74) é o serviço do bom pastor, que oferece a vida pelas ovelhas (Jo
10, 14-15).

Eucaristia e celibato sacerdotal

24. Os padres sinodais quiseram sublinhar como o sacerdócio ministerial requer, através da
ordenação, a plena configuração a Cristo. Embora respeitando a prática e tradição oriental
diferente, é necessário reiterar o sentido profundo do celibato sacerdotal, justamente
considerado uma riqueza inestimável e confirmado também pela prática oriental de escolher
os bispos apenas de entre aqueles que vivem no celibato, indício da grande honra em que
ela tem a opção do celibato feita por numerosos presbíteros. Com efeito, nesta opção do
sacerdote encontram expressão peculiar a dedicação que o conforma a Cristo e a oferta
exclusiva de si mesmo pelo Reino de Deus.(75) O fato de o próprio Cristo, eterno sacerdote,
ter vivido a sua missão até ao sacrifício da cruz no estado de virgindade constitui o ponto
seguro de referência para perceber o sentido da tradição da Igreja Latina a tal respeito.
Assim, não é suficiente compreender o celibato sacerdotal em termos meramente funcionais;
na realidade, constitui uma especial conformação ao estilo de vida do próprio Cristo. Antes
de mais, semelhante opção é esponsal: a identificação com o coração de Cristo Esposo que
dá a vida pela sua Esposa. Em sintonia com a grande tradição eclesial, com o Concílio
Vaticano II (76) e com os Sumos Pontífices (77) meus predecessores, corroboro a beleza e a
importância duma vida sacerdotal vivida no celibato como sinal expressivo de dedicação
total e exclusiva a Cristo, à Igreja e ao Reino de Deus, e, conseqüentemente, confirmo a sua
obrigatoriedade para a tradição latina. O celibato sacerdotal, vivido com maturidade, alegria
e dedicação, é uma bênção enorme para a Igreja e para a própria sociedade.

Escassez de clero e pastoral vocacional

25. A propósito da ligação entre o sacramento da Ordem e a Eucaristia, o Sínodo deteve-se
sobre a dolorosa situação que se tem vindo a criar em diversas dioceses a braços com a
escassez de sacerdotes. Isto acontece não só em algumas zonas de primeira evangelização,
mas também em muitos países de longa tradição cristã. Para a solução do problema
contribui certamente uma distribuição mais eqüitativa do clero; mas, para isso, é preciso
um trabalho de sensibilização capilar. Os bispos empenhem nas necessidades pastorais os
institutos de vida consagrada e as novas realidades eclesiais, no respeito do respectivo
carisma, e solicitem todos os membros do clero a uma disponibilidade maior para irem
servir a Igreja nos lugares onde houver necessidade, sem olhar a sacrifícios.(78) Além disso,
o Sínodo debruçou-se também sobre os cuidados pastorais a ter principalmente com os
jovens para favorecer a sua abertura interior à vocação sacerdotal. A solução para tal
carestia não se pode encontrar em meros estratagemas pragmáticos; deve-se evitar que os
bispos, levados por compreensíveis preocupações funcionais devido à falta de clero, acabem
por não realizar um adequado discernimento vocacional, admitindo à formação específica e
à ordenação candidatos que não possuam as caráterísticas necessárias para o serviço
sacerdotal.(79) Um clero insuficientemente form
ado e admitido à ordenação sem o
necessário discernimento dificilmente poderá oferecer um testemunho capaz de suscitar
noutros o desejo de generosa correspondência à vocação de Cristo. Na realidade, a pastoral
vocacional deve empenhar a comunidade cristã em todos os seus âmbitos.(80) Obviamente,
no referido trabalho pastoral capilar, está incluída também a obra de sensibilização das
famílias, muitas vezes indiferentes se não mesmo contrárias à hipótese da vocação
sacerdotal. Que elas se abram com generosidade ao dom da vida e eduquem os filhos para
serem disponíveis à vontade de Deus! Em resumo, é preciso sobretudo ter a coragem de
propor aos jovens o seguimento radical de Cristo, mostrando-lhes o seu encanto.

Gratidão e esperança

26. Enfim, é necessário ter maior fé e esperança na iniciativa divina. Apesar da escassez de
clero que se verifica em algumas regiões, não deve esmorecer jamais a confiança de que
Cristo continua a suscitar homens que não hesitam em abandonar qualquer outra
ocupação para dedicar-se totalmente à celebração dos mistérios sagrados, à pregação do
Evangelho e ao ministério pastoral. Nesta ocasião, desejo dar voz à gratidão da Igreja inteira
por todos os bispos e presbíteros que cumprem, com fiel dedicação e empenho, a própria
missão. Naturalmente, este agradecimento da Igreja estende-se também aos diáconos, a
quem são impostas as mãos « não em ordem ao sacerdócio mas ao ministério ».(81) Como
recomendou a assembléia do Sínodo, dirijo um obrigado especial aos presbíteros fidei
donum que edificam a comunidade, com competência e generosa dedicação, anunciando-lhe
a palavra de Deus e repartindo o pão da vida, sem pouparem as suas energias ao serviço da
missão da Igreja.(82) Por fim, é preciso agradecer a Deus pelos numerosos sacerdotes que
tiveram de sofrer até ao sacrifício da vida por servir a Cristo. Neles se manifesta, com a
eloqüência dos fatos, o que significa ser sacerdote a fundo; trata-se de comoventes
testemunhos que poderão inspirar muitos jovens a seguirem por sua vez a Cristo e gastarem
a sua vida pelos outros, encontrando precisamente assim a vida verdadeira.

V. Eucaristia e Matrimônio

Eucaristia, sacramento esponsal


27. A Eucaristia, sacramento da caridade, apresenta uma relação particular com o amor do
homem e da mulher unidos em matrimônio. Aprofundar tal relação é uma necessidade do
nosso tempo.(83) Várias vezes o Papa João Paulo II teve ocasião de afirmar o caráter
esponsal da Eucaristia e a sua relação peculiar com o sacramento do matrimônio: « A
Eucaristia é o sacramento da nossa redenção. É o sacramento do Esposo, da Esposa ».(84)
Aliás, « toda a vida cristã tem a marca do amor esponsal entre Cristo e a Igreja. Já o
Batismo, entrada no povo de Deus, é um mistério nupcial; é, por assim dizer, o banho de
núpcias que precede o banquete das bodas, a Eucaristia ».(85) Esta corrobora de forma
inexaurível a unidade e o amor indissolúveis de cada matrimônio cristão. Neste, em virtude
do sacramento, o vínculo conjugal está intrinsecamente ligado com a união eucarística entre
Cristo esposo e a Igreja esposa (Ef 5, 31-32). O consentimento recíproco, que o marido e a
esposa trocam entre si em Cristo constituindo-os em comunidade de vida e de amor, tem
também uma dimensão eucarística; com efeito, na teologia paulina, o amor esponsal é sinal
sacramental do amor de Cristo pela sua Igreja, um amor que tem o seu ponto culminante
na cruz, expressão das suas « núpcias » com a humanidade e, ao mesmo tempo, origem e
centro da Eucaristia. Por isso, a Igreja manifesta uma particular solidariedade espiritual a
todos aqueles que fundaram a sua família sobre o sacramento do Matrimônio.(86) A família
— igreja doméstica (87) — é um âmbito primário da vida da Igreja, especialmente pelo papel
decisivo que tem na educação cristã dos filhos.(88) Neste contexto, o Sínodo recomendou
também o reconheci
mento da missão singular que tem a mulher na família e na sociedade,
missão esta que há-de ser protegida, salvaguardada e promovida.(89) A sua dimensão de
esposa e mãe constitui uma realidade imprescindível, que nunca deve ser desprezada.

Eucaristia e unidade do Matrimônio

28. É precisamente à luz desta relação intrínseca entre Matrimônio, família e Eucaristia que
se podem considerar alguns problemas pastorais. O vínculo fiel, indissolúvel e exclusivo que
une Cristo e a Igreja e tem expressão sacramental na Eucaristia, está de harmonia com o
dado antropológico primordial segundo o qual o homem deve unir-se de modo definitivo com
uma só mulher, e vice-versa (Gn 2, 24; Mt 19, 5). Nesta linha de pensamento, o Sínodo dos
Bispos debruçou-se sobre a prática pastoral que deve ser seguida com as pessoas
originárias de culturas onde é praticada a poligamia, que recebem o anúncio do Evangelho:
quantos vivem em tal situação e se abrem à fé cristã devem ser ajudados a integrar o seu
projeto humano na novidade radical de Cristo; no percurso do catecumenato, Cristo
alcança-os na sua condição específica e chama-os à verdade plena do amor passando
através das renúncias que são necessárias para chegarem à comunhão eclesial perfeita. A
Igreja acompanha-os com uma pastoral imbuída simultaneamente de suavidade e de
firmeza,(90) mostrando-lhes sobretudo a luz dos mistérios cristãos que se reflete sobre a
natureza e os afetos humanos.

Eucaristia e indissolubilidade do Matrimônio

29. Se a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de Deus em Cristo pela sua Igreja,
compreende-se por que motivo a mesma implique, relativamente ao sacramento do
Matrimônio, aquela indissolubilidade a que todo o amor verdadeiro não pode deixar de
anelar.(91) Por isso, é mais que justificada a atenção pastoral que o Sínodo reservou às
dolorosas situações em que se encontram não poucos fiéis que, depois de ter celebrado o
sacramento do Matrimônio, se divorciaram e contraíram novas núpcias. Trata-se dum
problema pastoral espinhoso e complexo, uma verdadeira praga do ambiente social
contemporâneo que vai progressivamente corroendo os próprios ambientes católicos. Os
pastores, por amor da verdade, são obrigados a discernir bem as diferentes situações, para
ajudar espiritualmente e de modo adequado os fiéis implicados.(92) O Sínodo dos Bispos
confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (Mc 10, 2-12), de não admitir
aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condição de vida
contradizem objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e
realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, não obstante a sua situação,
continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de
que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa
Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da palavra de Deus, da adoração
eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um
sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras
de penitência, do empenho na educação dos filhos.

Nos casos em que surjam legitimamente dúvidas sobre a validade do Matrimônio
sacramental contraído, deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento
das mesmas. Há que assegurar, pois, no pleno respeito do direito canônico,(93) a presença
no território dos tribunais eclesiásticos, o seu caráter pastoral, a sua atividade correta e
pressurosa; (94) é necessário haver, em cada diocese, um número suficiente de pessoas
preparadas para o solícito funcionamento dos tribunais eclesiásticos. Recordo que « é uma
obrigação grave tornar a atuação institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais
acessível aos fiéis ».(95) No entanto, é preciso evitar que a preocupação pastoral seja vista

como se estivesse em contraposição com o direito; ao contrário, deve-se partir do
pressuposto que o ponto fundamental de encontro entre direito e pastoral é o amor pela
verdade: com efeito, esta nunca é abstrata, mas « integra-se no itinerário humano e cristão
de cada fiel ».(96) Enfim, caso não seja reconhecida a nulidade do vínculo matrimonial e se
verifiquem condições objetivas que tornam realmente irreversível a convivência, a Igreja
encoraja estes fiéis a esforçarem-se por viver a sua relação segundo as exigências da lei de
Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente abeirar-se da mesa
eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial. Para que tal
caminho se torne possível e dê frutos, deve ser apoiado pela ajuda dos pastores e por
adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abençoar estas relações para
que não surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do matrimônio.(97)

Vista a complexidade do contexto cultural em que vive a Igreja em muitos países, o Sínodo
recomendou ainda que se tivesse o máximo cuidado pastoral com a formação dos nubentes
e a verificação prévia das suas convicções sobre os compromissos irrenunciáveis para a
validade do sacramento do Matrimônio. Um sério discernimento a tal respeito poderá evitar
que impulsos emotivos ou razões superficiais induzam os dois jovens a assumir
responsabilidades que depois não poderão honrar.(98) Demasiado grande é o bem que a
Igreja e a sociedade inteira esperam do Matrimônio e da família fundada sobre o mesmo
para não nos comprometermos a fundo neste âmbito pastoral específico; Matrimônio e
família são instituições cuja verdade deve ser promovida e defendida de qualquer equívoco,
porque todo o dano a elas causado é realmente uma ferida que se inflige à convivência
humana como tal.

Eucaristia e escatologia

Eucaristia, dom para o homem a caminho


30. Se é certo que os sacramentos são uma realidade que pertence à Igreja peregrina no
tempo (99) rumo à plena manifestação da vitória de Cristo ressuscitado, é igualmente
verdade que, sobretudo na liturgia eucarística, nos é dado saborear antecipadamente a
consumação escatológica para a qual todo o homem e a criação inteira estão a caminho (Rm
8, 19s). O homem é criado para a felicidade verdadeira e eterna, que só o amor de Deus
pode dar; mas a nossa liberdade ferida extraviar-se-ia se não lhe fosse possível
experimentar, já desde agora, algo da consumação futura. Aliás, para poder caminhar na
direção justa, o homem necessita de estar orientado para a meta final; esta, na realidade, é
o próprio Cristo Senhor, vencedor do pecado e da morte, que Se torna presente para nós de
maneira especial na celebração eucarística. Deste modo, embora sejamos ainda «
estrangeiros e peregrinos » (1 Pd 2, 11) neste mundo, pela fé participamos já da plenitude da
vida ressuscitada. O banquete eucarístico, ao revelar a sua dimensão intensamente
escatológica, vem em ajuda da nossa liberdade a caminho.

O banquete escatológico

31. Refletindo sobre este mistério, podemos dizer que Cristo, com a sua vinda, Se colocou
em sintonia com a expectativa presente no povo de Israel, na humanidade inteira e
fundamentalmente na própria criação. Com o dom de Si mesmo, inaugurou objetivamente o
tempo escatológico. Cristo veio chamar à unidade o povo de Deus que andava disperso (Jo
11, 52), manifestando claramente a intenção de congregar a comunidade da aliança para
dar cumprimento às promessas feitas por Deus a nossos pais (Jer 23, 3; 31, 10; Lc 1,
55.70). Com o chamamento dos Doze — número que evoca as doze tribos de Israel — e o
mandato que lhes confiou na Última Ceia, antes da sua paixão redentora, de celebrarem o
seu memorial, Jesus manifestou que queria transferir, para a comunidade inteira por Ele
fundada, a missão de ser, na história, sinal e instrumento da reunifi
cação escatológica que
n'Ele teve início. Por isso, em cada celebração eucarística, realiza-se sacramentalmente a
unificação escatológica do povo de Deus. Para nós, o banquete eucarístico é uma
antecipação real do banquete final, preanunciado pelos profetas (Is 25, 6-9) e descrito no
Novo Testamento como « as núpcias do Cordeiro » (Ap 19, 7-9) que se hão-de celebrar na
comunhão dos santos.(100)

Oração pelos defuntos

32. A celebração eucarística, na qual anunciamos a morte do Senhor e proclamamos a sua
ressurreição enquanto aguardamos a sua vinda gloriosa, é penhor da glória futura, quando
mesmo os nossos corpos serão glorificados. Ao celebrarmos o memorial da nossa salvação,
reforça-se em nós a esperança da ressurreição da carne juntamente com a possibilidade de
encontrarmos de novo, face a face, aqueles que nos precederam com o sinal da fé. Nesta
linha, queria, juntamente com os padres sinodais, lembrar a todos os fiéis a importância da
oração de sufrágio, particularmente a celebração de Missas, pelos defuntos para que,
purificados, possam chegar à visão beatífica de Deus.(101) Sempre que descobrimos de novo
a dimensão escatológica presente na Eucaristia, celebrada e adorada, somos apoiados no
nosso caminho e confortados na esperança da glória (Rm 5, 2; Tt 2, 13).

A Eucaristia e a Virgem Maria

33. Da relação entre a Eucaristia e os restantes sacramentos juntamente com o significado
escatológico dos santos mistérios, irrompe o perfil da vida cristã, chamada a ser em cada
instante culto espiritual, oferta de si mesma agradável a Deus. E, se é verdade que nos
encontramos todos ainda a caminho rumo à plena consumação da nossa esperança, isto
não impede de podermos já agora reconhecer, com gratidão, que tudo aquilo que Deus nos
deu, se realizou perfeitamente na Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa: a sua assunção ao
céu em corpo e alma é, para nós, sinal de segura esperança, enquanto nos aponta a nós,
peregrinos no tempo, aquela meta escatológica que o sacramento da Eucaristia desde já nos
faz saborear.

Em Maria Santíssima, vemos perfeitamente realizada também a modalidade sacramental
com que Deus alcança e envolve na sua iniciativa salvífica a criatura humana. Desde a
anunciação ao Pentecostes, Maria de Nazaré aparece como uma pessoa cuja liberdade está
completamente disponível à vontade de Deus; a sua Imaculada Conceição revela-se
propriamente na docilidade incondicional à palavra divina. A fé obediente é a forma que a
sua vida assume em cada instante perante a ação de Deus: Virgem à escuta, Ela vive em
plena sintonia com a vontade divina; conserva no seu coração as palavras que lhe chegam
da parte de Deus e, dispondo-as à maneira de um mosaico, aprende a compreendê-las mais
a fundo (Lc 2, 19.51); Maria é a grande Crente que, cheia de confiança, Se coloca nas mãos
de Deus, abandonando-Se à sua vontade.(102) Um tal mistério vai crescendo de intensidade
até chegar ao pleno envolvimento d'Ela na missão redentora de Jesus; como afirmou o
Concílio Vaticano II, « assim avançou a Virgem pelo caminho da fé, mantendo fielmente a
união com seu Filho até à cruz. Junto desta esteve, não sem desígnio de Deus (Jo 19, 25),
padecendo acerbamente com o seu Filho único, e associando-Se com coração de mãe ao seu
sacrifício, consentindo com amor na imolação da vítima que d'Ela nascera; finalmente,
Jesus Cristo, agonizante na cruz, deu-A por mãe ao discípulo, com estas palavras: mulher,
eis aí o teu filho (Jo 19, 26-27) ».(103) Desde a anunciação até à cruz, Maria é Aquela que
acolhe a Palavra que n'Ela Se fez carne e foi até emudecer no silêncio da morte. É Ela,
enfim, que recebe nos seus braços o corpo imolado, já exânime, d'Aquele que
verdadeiramente amou os Seus « até ao fim » (Jo 13, 1).

Por isso, sempre que na liturgia eucarística nos abeiramos do corpo e do sangue de Cristo,
dirigimo-nos também a Ela que, por toda a Ig
reja, acolheu o sacrifício de Cristo, aderindo
plenamente ao mesmo. Justamente afirmaram os padres sinodais que « Maria inaugura a
participação da Igreja no sacrifício do Redentor ».(104) Ela é a Imaculada que acolhe
incondicionalmente o dom de Deus, e desta forma fica associada à obra da salvação. Maria
de Nazaré, ícone da Igreja nascente, é o modelo para cada um de nós saber como é chamado
a acolher a doação que Jesus fez de Si mesmo na Eucaristia.

II PARTE

EUCARISTIA, MISTÉRIO CELEBRADO


« Em verdade, em verdade vos digo:
Não foi Moisés que vos deu o pão
que vem do céu; meu Pai é que vos dá
o verdadeiro pão que vem do céu » (Jo 6, 32)

Norma da oração e norma de fé

34. O Sínodo dos Bispos refletiu demoradamente sobre a relação intrínseca entre fé
eucarística e celebração, pondo em evidência a ligação entre a norma da oração (lex orandi)
e a norma de fé (lex credendi) e sublinhando o primado da ação litúrgica. É necessário viver
a Eucaristia como mistério da fé autenticamente celebrado, bem cientes de que « a
inteligência da fé (intellectus fidei) sempre está originariamente em relação com a ação
litúrgica da Igreja »:(105) neste âmbito, a reflexão teológica não pode prescindir jamais da
ordem sacramental instituída pelo próprio Cristo; por outro lado, a ação litúrgica nunca
pode ser considerada genericamente, prescindindo do mistério da fé. Com efeito, a fonte da
nossa fé e da liturgia eucarística é o mesmo acontecimento: a doação que Cristo fez de Si
próprio no mistério pascal.

Beleza e liturgia

35. A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar,
no valor teológico e litúrgico da beleza. De fato, a liturgia, como aliás a revelação cristã, tem
uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade (veritatis splendor). Na liturgia,
brilha o mistério pascal, pelo qual o próprio Cristo nos atrai a Si e chama à comunhão. Em
Jesus, como costumava dizer São Boaventura, contemplamos a beleza e o esplendor das
origens.(106) Referimo-nos aqui a este atributo da beleza, vista não enquanto mero
esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos
alcança, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a
nossa verdadeira vocação: o amor.(107) Já na criação, Deus Se deixa entrever na beleza e
harmonia do universo (Sab 13, 5; Rm 1, 19-20). Depois, no Antigo Testamento, encontramos
sinais grandiosos do esplendor da força de Deus, que Se manifesta com a sua glória através
dos prodígios realizados no meio do povo eleito (Ex 14; 16, 10; 24, 12-18; Nm 14, 20-23). No
Novo Testamento, realiza-se definitivamente esta epifania de beleza na revelação de Deus em
Jesus Cristo: (108) Ele é a manifestação plena da glória divina. Na glorificação do Filho,
resplandece e comunica-se a glória do Pai (Jo 1, 14; 8, 54; 12, 28; 17, 1). Mas, esta beleza
não é uma simples harmonia de formas; « o mais belo dos filhos do homem » (Sal 45/44, 3)
misteriosamente é também um indivíduo « sem distinção nem beleza que atraia o nosso
olhar » (Is 53, 2). Jesus Cristo mostra-nos como a verdade do amor sabe transfigurar
inclusive o mistério sombrio da morte na luz radiante da ressurreição. Aqui o esplendor da
glória de Deus supera toda a beleza do mundo. A verdadeira beleza é o amor de Deus que
nos foi definitivamente revelado no mistério pascal.

A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de
certa forma, constitui o céu que desce à terra. O memorial do sacrifício redentor traz em si
mesmo os traços daquela beleza de Jesus testemunhada por Pedro, Tiago e João, quando o
Mestre, a caminho de Jerusalém, quis transfigurar-Se diante deles (Mc 9, 2). Concluindo, a
beleza não é um fator decorativo da ação litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto
atributo do próprio Deus e da sua re
velação. Tudo isto nos há-de tornar conscientes da
atenção que se deve prestar à ação litúrgica para que brilhe segundo a sua própria
natureza.

A celebração eucarística,
obra de Cristo inteiro

Cristo inteiro: cabeça e corpo


36. A beleza intrínseca da liturgia tem, como sujeito próprio, Cristo ressuscitado e
glorificado no Espírito Santo, que inclui a Igreja na sua ação.(109) Nesta perspectiva, é
muito sugestivo recordar as palavras de Santo Agostinho que descrevem, de modo eficaz,
esta dinâmica de fé própria da Eucaristia; referindo-se precisamente ao mistério eucarístico,
o grande santo de Hipona põe em evidência como o próprio Cristo nos assimila a Si mesmo:
« O pão que vedes sobre o altar, santificado com a palavra de Deus, é o corpo de Cristo. O
cálice, ou melhor, aquilo que o cálice contém, santificado com as palavras de Deus, é
sangue de Cristo. Com estes [sinais], Cristo Senhor quis confiar-nos o seu corpo e o seu
sangue, que derramou por nós para a remissão dos pecados. Se os recebestes bem, vós
mesmos sois Aquele que recebestes ».(110) Assim, « tornamo-nos não apenas cristãos, mas o
próprio Cristo ».(111) Nisto podemos contemplar a ação misteriosa de Deus, que inclui a
unidade profunda entre nós e o Senhor Jesus: « De fato, não se pode crer que Cristo esteja
na cabeça sem estar também no corpo, pois Ele está todo inteiro na cabeça e no corpo
(Christus totus in capite et in corpore) ».(112)

Eucaristia e Cristo ressuscitado

37. Visto que a liturgia eucarística é essencialmente ação de Deus (actio Dei) que nos
envolve em Jesus por meio do Espírito, o seu fundamento não está à mercê do nosso
arbítrio e não pode suportar a chantagem das modas passageiras. Vale aqui também, sem
dúvida, a advertência de São Paulo: « Ninguém pode pôr outro fundamento diferente do que
foi posto, isto é, Jesus Cristo » (1 Cor 3, 11). O Apóstolo das Gentes certifica-nos ainda,
referindo-se à Eucaristia, que não nos comunica uma doutrina pessoal, mas aquilo que, por
sua vez, tinha recebido (1 Cor 11, 23); de fato, a celebração da Eucaristia implica a Tradição
viva. A Igreja celebra o sacrifício eucarístico obedecendo ao mandato de Cristo, a partir da
experiência do Ressuscitado e da efusão do Espírito Santo. Por este motivo, a comunidade
cristã, desde os seus primórdios, reúne-se para a fração do pão (fractio panis) no dia do
Senhor. O dia em que Cristo ressuscitou dos mortos, o domingo, é também o primeiro dia
da semana, aquele em que a tradição do Antigo Testamento contemplava o início da criação.
O dia da criação tornou-se agora o dia da « nova criação », o dia da nossa libertação, no qual
fazemos memória de Cristo morto e ressuscitado.(113)

Arte da celebração

38. Durante os trabalhos sinodais, foi várias vezes recomendada a necessidade de superar
toda e qualquer separação entre a arte da celebração (ars celebrandi, isto é, a arte de
celebrar retamente) e a participação plena, ativa e frutuosa de todos os fiéis: com efeito, o
primeiro modo de favorecer a participação do povo de Deus no rito sagrado é a condigna
celebração do mesmo; a arte da celebração é a melhor condição para a participação ativa
(actuosa participatio).(114) Aquela resulta da fiel obediência às normas litúrgicas na sua
integridade, pois é precisamente este modo de celebrar que, há dois mil anos, garante a vida
de fé de todos os crentes, chamados a viver a celebração enquanto povo de Deus, sacerdócio
real, nação santa (1 Pd 2, 4-5.9).(115)

O bispo, liturgista por excelência

39. Se é verdade que todo o povo de Deus participa na liturgia eucarística, uma função
imprescindível, relativamente à correta ars celebrandi, compete todavia àqueles que
receberam o sacramento da Ordem. Bispos, sacerdotes e diáconos, cada qual segundo o
próprio grau, devem considerar a celebração como o seu dever principal.(116) Antes de mais
ninguém
, o bispo diocesano: de fato, como « primeiro dispensador dos mistérios de Deus na
Igreja particular que lhe está confiada, ele é o guia, o promotor e o guardião de toda a vida
litúrgica ».(117) Tudo isto é decisivo para a vida da Igreja particular, não só porque a
comunhão com o bispo é condição para que seja legítima uma celebração no respectivo
território, mas também porque ele mesmo é o liturgista por excelência da sua Igreja.(118)
Compete-lhe salvaguardar a concorde unidade das celebrações na sua diocese; por isso,
deve ser « preocupação do bispo fazer com que os presbíteros, os diáconos e os fiéis
compreendam cada vez melhor o sentido autêntico dos ritos e dos textos litúrgicos, levando-
os deste modo a uma ativa e frutuosa celebração da Eucaristia ».(119) De modo particular,
exorto a fazer tudo o que for necessário a fim de que as celebrações litúrgicas realizadas
pelo bispo na catedral se desenrolem no respeito cabal da arte da celebração, para que
possam ser consideradas como modelo por todas as igrejas espalhadas no território.(120)

O respeito pelos livros litúrgicos e pela riqueza dos sinais

40. Ao ressaltar a importância da arte da celebração, conseqüentemente põe-se em
evidência o valor das normas litúrgicas.(121) Aquela deve favorecer o sentido do sagrado e a
utilização das formas exteriores que educam para tal sentido, como, por exemplo, a
harmonia do rito, das vestes litúrgicas, da decoração e do lugar sagrado. A celebração
eucarística é frutuosa quando os sacerdotes e os responsáveis da pastoral litúrgica se
esforçam por dar a conhecer os livros litúrgicos em vigor e as respectivas normas, pondo em
destaque as riquezas estupendas da Instrução Geral do Missal Romano e da Instrução das
Leituras da Missa. Talvez se dê por adquirido, nas comunidades eclesiais, o seu
conhecimento e devido apreço, mas freqüentemente não é assim; na realidade, trata-se de
textos onde estão contidas riquezas que guardam e exprimem a fé e o caminho do povo de
Deus ao longo dos dois milênios da sua história. Igualmente importante para uma correta
arte da celebração é a atenção a todas as formas de linguagem previstas pela liturgia:
palavra e canto, gestos e silêncios, movimento do corpo, cores litúrgicas dos paramentos.
Com efeito, a liturgia, por sua natureza, possui uma tal variedade de níveis de comunicação
que lhe permitem cativar o ser humano na sua totalidade. A simplicidade dos gestos e a
sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos momentos previstos, comunicam e cativam
mais do que o artificialismo de adições inoportunas. A atenção e a obediência à estrutura
própria do rito, ao mesmo tempo que exprimem a consciência do caráter de dom da
Eucaristia, manifestam a vontade que o ministro tem de acolher, com dócil gratidão, esse
dom inefável.

Arte ao serviço da celebração

41 A profunda ligação entre a beleza e a liturgia deve levar-nos a considerar atentamente
todas as expressões artísticas colocadas ao serviço da celebração.(122) Uma componente
importante da arte sacra é, sem dúvida, a arquitetura das igrejas,(123) nas quais há-de
sobressair a coerência entre os elementos próprios do presbitério: altar, crucifixo, sacrário,
ambão, cadeira. A este respeito, tenha-se presente que a finalidade da arquitetura sacra é
oferecer à Igreja que celebra os mistérios de fé, especialmente a Eucaristia, o espaço mais
idôneo para uma condigna realização da sua ação litúrgica; (124) de fato, a natureza do
templo cristão define-se precisamente pela ação litúrgica, a qual implica a reunião dos fiéis
(ecclesia), que são as pedras vivas do templo (1 Pd 2, 5).

O mesmo princípio vale para toda a arte sacra em geral, especialmente para a pintura e a
escultura, devendo a iconografia religiosa ser orientada para a mistagogia sacramental. Um
conhecimento profundo das formas que a arte sacra conseguiu produzir, ao longo dos
séculos, pode ser
de grande ajuda para quem tenha a responsabilidade de chamar
arquitectos e artistas para comissionar-lhes obras de arte destinadas à ação litúrgica; por
isso, é indispensável que, na formação dos seminaristas e dos sacerdotes, se inclua, entre
as disciplinas importantes, a História da Arte com especial referimento aos edifícios de culto
à luz das normas litúrgicas. Enfim, é necessário que, em tudo quanto tenha a ver com a
Eucaristia, haja gosto pela beleza; dever-se-á ter respeito e cuidado também pelos
paramentos, as alfaias, os vasos sagrados, para que, interligados de forma orgânica e
ordenada, alimentem o enlevo pelo mistério de Deus, manifestem a unidade da fé e reforcem
a devoção.(125)

O canto litúrgico

42. Na arte da celebração, ocupa lugar de destaque o canto litúrgico.(126) Com razão afirma
Santo Agostinho, num famoso sermão: « O homem novo conhece o cântico novo. O cântico é
uma manifestação de alegria e, se considerarmos melhor, um sinal de amor ».(127) O povo
de Deus, reunido para a celebração, canta os louvores de Deus. Na sua história bimilenária,
a Igreja criou, e continua a criar, música e cânticos que constituem um patrimônio de fé e
amor que não se deve perder. Verdadeiramente, em liturgia, não podemos dizer que tanto
vale um cântico como outro; a propósito, é necessário evitar a improvisação genérica ou a
introdução de gêneros musicais que não respeitem o sentido da liturgia. Enquanto elemento
litúrgico, o canto deve integrar-se na forma própria da celebração; (128) conseqüentemente,
tudo — no texto, na melodia, na execução — deve corresponder ao sentido do mistério
celebrado, às várias partes do rito e aos diferentes tempos litúrgicos.(129) Enfim, embora
tendo em conta as distintas orientações e as diferentes e amplamente louváveis tradições,
desejo — como foi pedido pelos padres sinodais — que se valorize adequadamente o canto
gregoriano,(130) como canto próprio da liturgia romana.(131)

A estrutura da celebração eucarística

43. Depois de ter recordado os elementos fundamentais da arte da celebração relevados
durante os trabalhos sinodais, desejo chamar a atenção mais especificamente para algumas
partes da estrutura da celebração eucarística, que necessitam de um cuidado particular no
nosso tempo, a fim de permanecermos fiéis à intenção profunda da renovação litúrgica que
o Concílio Vaticano II quis em continuidade com toda a grande tradição eclesial.

Unidade intrínseca da ação litúrgica

44. Antes de mais, é necessário refletir sobre a unidade intrínseca do rito da Santa Missa,
evitando, tanto nas catequeses como na modalidade de cele-bração, que se dê ensejo a uma
visão justaposta das duas partes do rito: a liturgia da palavra e a liturgia eucarística — para
além dos ritos iniciais e conclu-sivo — « estão entre si tão estreitamente ligadas que
constituem um único ato de culto ». (132)
De fato, existe uma ligação intrínseca entre a palavra de Deus e a parte eucarística: ao
ouvirmos a palavra de Deus, nasce ou reforça-se a fé (Rm 10, 17), enquanto, na parte
eucarística, o Verbo feito carne dá-Se a nós como alimento espiritual; (133) assim, « a partir
das duas mesas, a da palavra de Deus e a do corpo de Cristo, a Igreja recebe e oferece aos
fiéis o pão de vida ».(134) Por isso, deve ter-se constantemente presente que a palavra de
Deus, lida e anunciada na liturgia pela Igreja, conduz à Eucaristia como a seu fim
conatural.

A liturgia da palavra

45. Juntamente com o Sínodo, peço que a liturgia da palavra seja sempre devidamente
preparada e vivida. Recomendo, pois, vivamente que se tenha grande cuidado, nas liturgias,
com a proclamação da palavra de Deus por leitores bem preparados; nunca nos esqueçamos
de que, « quando na igreja se lê a Sagrada Escritura, é o próprio Deus que fala ao seu povo,
é Cristo presente na sua palavra que anuncia o Evangelho ».(135) Se as
circunstâncias o
recomendarem, pode-se pensar numas breves palavras de introdução, que ajudem os fiéis a
tomar renovada consciência do momento. Para ser bem compreendida, a palavra de Deus
deve ser escutada e acolhida com espírito eclesial e cientes da sua unidade com o
sacramento eucarístico. Com efeito, a palavra que anunciamos e ouvimos é o Verbo feito
carne (Jo 1, 14) e possui uma referência intrínseca à pessoa de Cristo e à modalidade
sacramental da sua permanência: Cristo não fala no passado mas no nosso presente, tal
como Ele está presente na ação litúrgica. Neste horizonte sacramental da revelação
cristã,(136) o conhecimento e o estudo da palavra de Deus permitem-nos valorizar, celebrar
e viver melhor a Eucaristia; também aqui se mostra em toda a sua verdade a conhecida
asserção: « A ignorância da Escritura é ignorância de Cristo ».(137)

Para isso, é necessário ajudar os fiéis a valorizarem os tesouros da Sagrada Escritura
presentes no Lecionário, por meio de iniciativas pastorais, de celebrações da palavra e da
leitura orante (lectio divina). Além disso, não se esqueça de promover as formas de oração
confirmadas pela tradição: a Liturgia das Horas, sobretudo Laudes, Vésperas, Completas e
ainda as celebrações das Vigílias. A oração dos salmos, as leituras bíblicas e as da grande
tradição apresentadas no Ofício Divino podem levar a uma experiência profunda do
acontecimento de Cristo e da economia da salvação, capaz por sua vez de enriquecer a
compreensão e a participação na celebração eucarística.(138)

A homilia

46. Pensando na importância da palavra de Deus, surge a necessidade de melhorar a
qualidade da homilia; de fato, esta « constitui parte integrante da ação litúrgica »,(139) cuja
função é favorecer uma compreensão e eficácia mais ampla da palavra de Deus na vida dos
fiéis. Por isso, os ministros ordenados devem « preparar cuidadosamente a homilia,
baseando-se num adequado conhecimento da Sagrada Escritura ».(140) Evitem-se homilias
genéricas ou abstratas; de modo particular, peço aos ministros para fazerem com que a
homilia coloque a palavra de Deus proclamada em estreita relação com a celebração
sacramental (141) e com a vida da comunidade, de tal modo que a palavra de Deus seja
realmente apoio e vida da Igreja.(142) Tenha-se presente, portanto, a finalidade catequética
e exortativa da homilia. Considera-se que é oportuno oferecer prudentemente, a partir do
Leccionário trienal, homilias temáticas aos fiéis que tratem, ao longo do ano litúrgico, os
grandes temas da fé cristã, haurindo de quanto está autorizadamente proposto pelo
Magistério nos quatro « pilares » do Catecismo da Igreja Católica e no recente Compêndio: a
profissão da fé, a celebração do mistério cristão, a vida em Cristo, a oração cristã.(143)

Apresentação das oferendas

47. Os padres sinodais chamaram a atenção também para a apresentação das oferendas.
Não se trata simplesmente duma espécie de « intervalo » entre a liturgia da palavra e a
liturgia eucarística, o que faria, sem dúvida, atenuar o sentido de um único rito composto
de duas partes interligadas; realmente, neste gesto humilde e simples, encerra-se um
significado muito grande: no pão e no vinho que levamos ao altar, toda a criação é assumida
por Cristo Redentor para ser transformada e apresentada ao Pai.(144) Nesta perspectiva,
levamos ao altar também todo o sofrimento e tribulação do mundo, na certeza de que tudo é
precioso aos olhos de Deus. Este gesto não necessita de ser enfatizado com descabidas
complicações para ser vivido no seu significado autêntico: o mesmo permite valorizar a
participação primeira que Deus pede ao homem, ou seja, levar em si mesmo a obra divina à
perfeição, e dar assim pleno sentido ao trabalho humano que, através da celebração
eucarística, fica unido ao sacrifício redentor de Cristo.

A Oração Eucarística

48. A Oração Eucarí
stica é « o ponto central e culminante de toda a celebração »; (145)
merece ser convenientemente ressaltada a sua importância. As diversas Orações
Eucarísticas contidas no Missal foram-nos transmitidas pela Tradição viva da Igreja e
caracterizam-se por uma riqueza teológica e espiritual inesgotável; os fiéis devem poder ser
capazes de apreciá-la. A isto mesmo nos ajuda a Instrução Geral do Missal Romano, quando
lembra os elementos fundamentais de cada Oração Eucarística: ação de graças, aclamação,
epiclese, narração da instituição, consagração, anamnese, oblação, intercessões e doxologia
final.(146) Em particular, a espiritualidade eucarística e a reflexão teológica são iluminadas
se se contempla a profunda unidade que existe, na anáfora, entre a invocação do Espírito
Santo e a narração da instituição,(147) quando « se realiza o sacrifício que o próprio Cristo
instituiu na Última Ceia ».(148) De fato, « por meio de invocações especiais, a Igreja implora
o poder do Espírito Santo, para que os dons oferecidos pelos homens sejam consagrados,
isto é, se convertam no corpo e sangue de Cristo, e para que a vítima imaculada, que vai ser
recebida na comunhão, opere a salvação daqueles que dela vão participar ».(149)

Saudação da paz

49. A Eucaristia é, por sua natureza, sacramento da paz. Na celebração litúrgica, esta
dimensão do mistério eucarístico encontra a sua manifestação específica no rito da
saudação da paz. Trata-se, sem dúvida, dum sinal de grande valor (Jo 14, 27). Neste nosso
tempo pavorosamente cheio de conflitos, tal gesto adquire — mesmo do ponto de vista da
sensibilidade comum — um relevo particular, pois a Igreja sente cada vez mais como sua
missão própria a de implorar ao Senhor o dom da paz e da unidade para si mesma e para a
família humana inteira. A paz é, sem dúvida, uma aspiração radical que se encontra no
coração de cada um; a Igreja dá voz ao pedido de paz e reconciliação que brota do espírito
de cada pessoa de boa vontade, apresentando-o Àquele que « é a nossa paz » (Ef 2, 14) e
pode pacificar de novo povos e pessoas, mesmo onde tivessem falido os esforços humanos. A
partir de tudo isto, é possível compreender a intensidade com que freqüentemente é sentido
o rito da paz na celebração litúrgica. A este respeito, porém, durante o Sínodo dos Bispos foi
sublinhada a conveniência de moderar este gesto, que pode assumir expressões excessivas,
suscitando um pouco de confusão na assembléia precisamente antes da comunhão. É bom
lembrar que nada tira ao alto valor do gesto a sobriedade necessária para se manter um
clima apropriado à celebração, limitando, por exemplo, a saudação da paz a quem está mais
próximo.(150)

Distribuição e recepção da Eucaristia

50. Outro momento da celebração, que necessita de menção, é a distribuição e a recepção
da sagrada comunhão. Peço a todos, especialmente aos ministros ordenados e àqueles que,
devidamente preparados e em caso de real necessidade, estejam autorizados para o
ministério da distribuição da Eucaristia, que façam o possível para que o gesto, na sua
simplicidade, corresponda ao seu valor de encontro pessoal com o Senhor Jesus no
sacramento. Quanto às prescrições para a correta prática do mesmo, vejam-se os
documentos recentemente emanados; (151) todas as comunidades cristãs se atenham
fielmente às normas vigentes, vendo nelas a expressão da fé e do amor que todos devemos
ter por este sublime sacramento. Além disso, não seja transcurado o tempo precioso de ação
de graças depois da comunhão: além da entoação dum cântico oportuno, pode ser muito
útil também permanecer recolhidos em silêncio.(152)

A propósito, desejo chamar a atenção para um problema pastoral com que freqüentemente
nos deparamos no nosso tempo: em determinadas circunstâncias como, por exemplo, nas
Missas celebradas por ocasião de matrimônios, funerais ou acontecimentos análogos,
encontram-se pre
sentes na celebração, além dos fiéis praticantes, outros que talvez há anos
não se aproximam do altar ou se encontram numa situação de vida que não permite o
acesso aos sacramentos; outras vezes acontece que estão presentes pessoas de outras
confissões cristãs ou até de outras religiões. Circunstâncias semelhantes verificam-se
também em igrejas que são meta de turistas, sobretudo nas cidades de grande valor
artístico. Ora, salta aos olhos a necessidade de encontrar formas breves e incisivas para
alertar a todos sobre o sentido da comunhão sacramental e sobre as condições que se
requerem para a sua recepção. Em situações onde não se possa garantir a necessária
clareza quanto ao significado da Eucaristia, deve-se ponderar a oportunidade de substituir a
celebração eucarística por uma celebração da palavra de Deus.(153)

A despedida: « Ite, missa est »

51. Por último, quero deter-me naquilo que disseram os padres sinodais acerca da saudação
de despedida no final da celebração eucarística. Depois da bênção, o diácono ou o sacerdote
despede o povo com as palavras « Ide em paz e o Senhor vos acompanhe », tradução
aproximada da fórmula latina: Ite, missa est. Nesta saudação, podemos identificar a relação
entre a Missa celebrada e a missão cristã no mundo. Na antiguidade, o termo « missa »
significava simplesmente « despedida »; mas, no uso cristão, o mesmo foi ganhando um
sentido cada vez mais profundo, tendo o termo « despedir » evoluído para « expedir em
missão ». Deste modo, a referida saudação exprime sinteticamente a natureza missionária
da Igreja; seria bom ajudar o povo de Deus a aprofundar esta dimensão constitutiva da vida
eclesial, tirando inspiração da liturgia. Nesta perspectiva, pode ser útil dispor de textos,
devidamente aprovados, para a oração sobre o povo e a bênção final que explicitem tal
ligação.(154)

Participação ativa - Autêntica participação

52. O Concílio Vaticano II colocara, justamente, uma ênfase particular sobre a participação
ativa, plena e frutuosa de todo o povo de Deus na celebração eucarística.(155) A renovação
operada nestes anos proporcionou, sem dúvida, notáveis progressos na direção desejada
pelos padres conciliares; mas não podemos ignorar que houve, às vezes, qualquer
incompreensão precisamente acerca do sentido desta participação. Convém, pois, deixar
claro que não se pretende, com tal palavra, aludir a mera atividade exterior durante a
celebração; na realidade, a participação ativa desejada pelo Concílio deve ser entendida, em
termos mais substanciais, a partir duma maior consciência do mistério que é celebrado e da
sua relação com a vida quotidiana. Permanece plenamente válida ainda a recomendação da
Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium feita aos fiéis quando os exorta a não
assistirem à liturgia eucarística « como estranhos ou espectadores mudos », mas a
participarem « na ação sagrada, consciente, ativa e piedosamente ».(156) E o Concílio,
desenvolvendo seu pensamento, prossegue: Os fiéis « sejam instruídos pela palavra de Deus;
alimentem-se à mesa do corpo do Senhor; dêem graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si
mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia
imaculada; que, dia após dia, por Cristo Mediador, progridam na unidade com Deus e entre
si ».(157)

Participação e ministério sacerdotal

53. A beleza e a harmonia da ação litúrgica encontram significativa expressão na ordem com
que cada um é chamado a participar ativamente nela; isto requer o conhecimento das
diversas funções hierárquicas implicadas na própria celebração. Pode ser útil lembrar que a
participação ativa na mesma não coincide, de per si, com o desempenho dum ministério
particular; sobretudo, não favorece a causa da participação ativa dos fiéis uma confusão
gerada pela incapacidade de distinguir, na comunhão eclesial, as diversas funções que
ca
bem a cada um.(158) De modo particular, convém que haja clareza quanto às funções
específicas do sacerdote: como atesta a tradição da Igreja, é ele quem insubstituivelmente
preside à celebração eucarística inteira, desde a saudação inicial até à bênção final. Em
virtude da Ordem sacra recebida, representa Jesus Cristo cabeça da Igreja e, na forma que
lhe é própria, também a Igreja.(159) De fato, cada celebração da Eucaristia é conduzida pelo
Bispo, « quer pessoalmente, quer pelos presbíteros seus colaboradores »; (160) e é
coadjuvado pelo diácono, que tem na celebração algumas funções específicas: preparar o
altar e assistir ao sacerdote, proclamar o Evangelho e, eventualmente, fazer a homilia,
propor aos fiéis as intenções da Oração Universal, distribuir a Eucaristia aos fiéis.(161) Em
relação com estes ministérios dependentes do sacramento da Ordem, aparecem depois
outros ministérios para o serviço litúrgico, louvavelmente desempenhados por religiosos e
leigos preparados.(162)

Celebração eucarística e inculturação

54. Partindo fundamentalmente de quanto afirmou o Concílio Vaticano II, várias vezes foi
sublinhada a importância da participação ativa dos fiéis no sacrifício eucarístico. Para a
favorecer, podem ter lugar algumas adaptações apropriadas aos respectivos contextos e às
diversas culturas;(163) o fato de ter havido alguns abusos não turba a clareza deste
princípio, que deve ser mantido segundo as necessidades reais da Igreja, a qual vive e
celebra o mesmo mistério de Cristo em situações culturais diferentes. De fato, o Senhor
Jesus, precisamente no mistério da Encarnação, ao nascer de uma mulher como perfeito
homem (Gal 4, 4) colocou-se em relação directa não só com as expectativas que se
registavam no âmbito do Antigo Testamento, mas também com as cultivadas por todos os
povos; manifestou, assim, que Deus pretende alcançar-nos no nosso contexto vital. Por
conseguinte é útil, para uma participação mais eficaz dos fiéis nos santos mistérios, a
continuação do processo de inculturação inclusivamente quanto à celebração eucarística,
tendo em conta as possibilidades de adaptação oferecidas pela Instrução Geral do Missal
Romano,(164) interpretadas à luz dos critérios estabelecidos pela IV Instrução da
Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, designada Varietates
legitimæ, de 25 de Janeiro de 1994,(165) e pelas diretrizes expressas pelo Papa João Paulo II
nas Exortações pós-sinodais Ecclesia in Africa, Ecclesia in America, Ecclesia in Asia,
Ecclesia in Oceania, Ecclesia in Europa.(166) Com esta finalidade, recomendo às
Conferências Episcopais que prossigam com esta obra, favorecendo um justo equilíbrio
entre os critérios e diretrizes já emanados e as novas adaptações,(167) sempre de acordo
com a Sé Apostólica.

Condições pessoais para uma participação ativa

55. Ao considerarem o tema da participação ativa (actuosa participatio) dos fiéis no rito
sagrado, os padres sinodais ressaltaram também as condições pessoais que se requerem em
cada um para uma frutuosa participação.(168) Uma delas é, sem dúvida, o espírito de
constante conversão que deve caracterizar a vida de todos os fiéis: não podemos esperar
uma participação ativa na liturgia eucarística, se nos abeiramos dela superficialmente e sem
antes nos interrogarmos sobre a própria vida. Favorecem tal disposição interior, por
exemplo, o recolhimento e o silêncio durante alguns momentos pelo menos antes do início
da liturgia, o jejum e — quando for preciso — a confissão sacramental; um coração
reconciliado com Deus predispõe para a verdadeira participação. De modo particular é
preciso alertar os fiéis que não se pode verificar uma participação ativa nos santos
mistérios, se ao mesmo tempo não se procura tomar parte ativa na vida eclesial em toda a
sua amplitude, incluindo o compromisso missionário de levar o amor de Cristo para o meio
da socieda
de.

Sem dúvida, para a plena participação na Eucaristia é preciso também aproximar-se
pessoalmente do altar para receber a comunhão; (169) contudo é preciso estar atento para
que esta afirmação, justa em si mesma, não induza os fiéis a um certo automatismo
levando-os a pensar que, pelo simples fato de se encontrar na igreja durante a liturgia, se
tenha o direito ou mesmo — quem sabe — se sinta no dever de aproximar-se da mesa
eucarística. Mesmo quando não for possível abeirar-se da comunhão sacramental, a
participação na Santa Missa permanece necessária, válida, significativa e frutuosa; neste
caso, é bom cultivar o desejo da plena união com Cristo, por exemplo, através da prática da
comunhão espiritual, recordada por João Paulo II (170) e recomendada por santos mestres
de vida espiritual.(171)

Participação dos cristãos não católicos

56. Ao tratarmos o tema da participação, temos inevitavelmente de falar dos cristãos que
pertencem a Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a
Igreja Católica. A este respeito, temos de dizer, por um lado, que o vínculo intrínseco
existente entre a Eucaristia e a unidade da Igreja nos faz desejar ardentemente o dia em que
poderemos celebrar, juntamente com todos os que crêem em Cristo, a divina Eucaristia e
exprimir assim visivelmente aquela plena unidade que Cristo quis para os seus discípulos
(Jo 17, 21); mas, por outro lado, o respeito que devemos ao sacramento do corpo e do
sangue de Cristo impede-nos de fazer dele um simples « meio » usado indiscriminadamente
para alcançar a referida unidade.(172) De fato, a Eucaristia não manifesta somente a nossa
comunhão pessoal com Jesus Cristo, mas implica também a plena comunhão (communio)
com a Igreja; este é o motivo pelo qual, com dor mas não sem esperança, pedimos aos
cristãos não católicos que compreendam e respeitem a nossa convicção, que assenta na
Bíblia e na Tradição: pensamos que a comunhão eucarística e a comunhão eclesial se
interpenetrem tão intimamente que se torna geralmente impossível aos cristãos não
católicos terem acesso a uma sem gozar da outra. Ainda mais desprovida de sentido seria
uma concelebração verdadeira e própria com ministros de Igrejas ou Comunidades eclesiais
que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. Não deixa, porém, de ser verdade
que, em ordem à salvação eterna, há a possibilidade de admitir indivíduos cristãos não
católicos à Eucaristia, ao sacramento da Penitência e à Unção dos Enfermos; mas isso
supõe que se verifiquem determinadas e excepcionais situações, associadas a precisas
condições.(173) Estas aparecem claramente indicadas no Catecismo da Igreja Católica (174)
e no seu Compêndio.(175) É dever de cada um ater-se a elas fielmente.

Participação através dos meios de comunicação

57. Devido ao progresso admirável dos meios de comunicação, nos últimos decénios a
palavra « participação » adquiriu um significado mais amplo do que no passado; com
satisfação, todos reconhecemos que estes instrumentos oferecem novas possibilidades
inclusivamente quanto à celebração eucarística.(176) Isto requer dos agentes pastorais do
sector uma preparação específica e um vivo sentido de responsabilidade; com efeito, a Santa
Missa transmitida na televisão ganha inevitavelmente um certo caráter de exemplaridade;
daí o dever de prestar particular atenção a que a celebração, além de se realizar em lugares
dignos e bem preparados, respeite as normas litúrgicas.

Enfim, quanto ao valor desta participação na Santa Missa pelos meios de comunicação,
quem assiste a tais transmissões deve saber que, em condições normais, não cumpre o
preceito dominical; de fato, a linguagem da imagem representa a realidade, mas não a
reproduz em si mesma.(177) Se é muito louvável que idosos e doentes participem na Santa
Missa festiva através das transmissões radiotelevisivas, o mesmo não se pode dizer de q
uem
quisesse, por meio de tais transmissões, dispensar-se de ir à igreja tomar parte na
celebração eucarística na assembléia da Igreja viva.

Participação ativa dos doentes

58. Considerando a condição de quantos por motivos de saúde ou idade não podem ir aos
lugares de culto, quero chamar a atenção de toda a comunidade eclesial para a necessidade
pastoral de garantir a assistência espiritual aos doentes, quer estejam nas próprias casas
quer se encontrem no hospital. Diversas vezes, no Sínodo dos Bispos, se aludiu à sua
condição; é preciso providenciar para que estes nossos irmãos e irmãs possam receber, com
freqüência, a comunhão sacramental; revigorando assim a sua relação com Cristo
crucificado e ressuscitado, poderão sentir a própria existência inserida plenamente na vida e
missão da Igreja, por meio da oferta do seu sofrimento em união com o sacrifício de Nosso
Senhor. Uma particular atenção há-de ser reservada aos deficientes: sempre que a sua
condição o permita, a comunidade cristã deve facilitar a sua participação na celebração no
lugar de culto; a propósito, procure-se remover, nos edifícios sagrados, eventuais obstáculos
arquitetônicos que impeçam o seu acesso aos deficientes. Enfim, seja garantida também a
comunhão eucarística, na medida do possível, aos deficientes mentais, batizados e cris-
mados: eles recebem a Eucaristia na fé também da família ou da comunidade que os
acompanha.(178)

A solicitude pelos presos

59. A tradição espiritual da Igreja, na esteira duma concreta afirmação de Cristo (Mt 25, 36),
individuou na visita aos presos uma das obras de misericórdia corporais. Aqueles que se
encontram nesta situação têm particularmente necessidade de ser visitados pelo próprio
Senhor no sacramento da Eucaristia; experimentar a solidariedade da comunidade eclesial,
participar na Eucaristia e receber a sagrada comunhão num período da vida tão especial e
doloroso pode seguramente contribuir para a qualidade do seu caminho de fé e favorecer a
plena recuperação social da pessoa. Interpretando votos formulados na assembléia sinodal,
peço às dioceses para providenciarem que haja, na medida do possível, um conveniente
investimento de forças na atividade pastoral dedicada ao cuidado espiritual dos presos.(179)

Os migrantes e a participação na Eucaristia

60. Ao abordar o problema das pessoas que, por motivos vários, são obrigadas a deixar a
sua terra, o Sínodo manifestou particular gratidão a quantos vivem empenhados no cuidado
pastoral dos migrantes. Neste contexto, uma atenção específica deve ser dada aos migrantes
membros das Igrejas Católicas Orientais, já que, à separação da própria casa, vem juntar-se
a dificuldade de não poderem participar na liturgia eucarística segundo o próprio rito a que
pertencem; por isso, onde for possível, seja-lhes concedido usufruir da assistência de
sacerdotes do seu rito. Em todo o caso, peço aos bispos que acolham estes irmãos na
caridade de Cristo. O encontro entre fiéis de rito diverso pode tornar-se também ocasião de
mútuo enriquecimento: penso de modo particular no benefício que pode resultar, sobretudo
para o clero, do conhecimento das diversas tradições.(180)

As grandes concelebrações

61. A assembléia sinodal deteve-se a analisar a qualidade da participação nas grandes
celebrações que têm lugar em circunstâncias particulares e nas quais se encontram, para
além dum grande número de fiéis, também muitos sacerdotes concelebrantes.(181) É fácil,
por um lado, reconhecer o valor destes momentos, especialmente quando preside o bispo
rodeado do seu presbitério e dos diáconos; mas, por outro, em tais ocasiões podem verificar-
se problemas quanto à expressão sensível da unidade do presbitério, especialmente na
Oração Eucarística, e quanto à distribuição da sagrada comunhão. Deve-se evitar que estas
grandes concelebrações criem dispersão; providencie-
se a isto mesmo por meio de
adequados instrumentos de coordenação, e organizando o lugar de culto de tal modo que
permita aos presbíteros e aos fiéis uma plena e real participação. Entretanto, é preciso ter
presente que se trata de concelebrações com índole excepcional e limitadas a situações
extraordinárias.

A língua latina

62. O que acabo de afirmar não deve, porém, ofuscar o valor destas grandes liturgias; penso
neste momento, em particular, às celebrações que têm lugar durante encontros
internacionais, cada vez mais freqüentes hoje, e que devem justamente ser valorizadas. A
fim de exprimir melhor a unidade e a universalidade da Igreja, quero recomendar o que foi
sugerido pelo Sínodo dos Bispos, em sintonia com as diretrizes do Concílio Vaticano II: (182)
excetuando as leituras, a homilia e a oração dos fiéis, é bom que tais celebrações sejam em
língua latina; sejam igualmente recitadas em latim as orações mais conhecidas (183) da
tradição da Igreja e, eventualmente, entoadas algumas partes em canto gregoriano. A nível
geral, peço que os futuros sacerdotes sejam preparados, desde o tempo do seminário, para
compreender e celebrar a Santa Missa em latim, bem como para usar textos latinos e entoar
o canto gregoriano; nem se transcure a possibilidade de formar os próprios fiéis para
saberem, em latim, as orações mais comuns e cantarem, em gregoriano, determinadas
partes da liturgia.(184)

Celebrações eucarísticas em pequenos grupos

63. Bem distinta é a situação criada em algumas circunstâncias pastorais, onde,
precisamente para uma participação mais consciente, ativa e frutuosa, se favorecem as
celebrações em pequenos grupos. Embora reconhecendo o valor formativo subjacente a
estas opções, é necessário especificar que as mesmas devem ser harmonizadas com o
conjunto da proposta pastoral da diocese; com efeito, tais experiências perderiam o seu
caráter pedagógico, se fossem vistas em antagonismo ou paralelo com a vida da Igreja
particular. A este respeito, o Sínodo pôs em evidência alguns critérios a que se devem ater:
os pequenos grupos devem servir para unificar a comunidade, e não para a dividir; a prova
disto mesmo há-de ver-se na prática concreta; estes grupos devem favorecer a participação
frutuosa da assembléia inteira e preservar, na medida do possível, a unidade da vida
litúrgica de cada uma das famílias.(185)

Celebração interiormente participada
Catequese mistagógica


64. A grande tradição litúrgica da Igreja ensina-nos que é necessário, para uma frutuosa
participação, esforçar-se por corresponder pessoalmente ao mistério que é celebrado,
através do oferecimento a Deus da própria vida em união com o sacrifício de Cristo pela
salvação do mundo inteiro. Por este motivo, o Sínodo dos Bispos recomendou que se
fomentasse, nos fiéis, profunda concordância das disposições interiores com os gestos e
palavras; se ela faltasse, as nossas celebrações, por muito animadas que fossem, arriscar-
se-iam a cair no ritualismo. Assim, é preciso promover uma educação da fé eucarística que
predisponha os fiéis a viverem pessoalmente o que se celebra. Vista a importância essencial
desta participação pessoal e consciente, quais poderiam ser os instrumentos de formação
mais adequados? Para isso, os padres sinodais indicaram unanimemente a estrada duma
catequese de caráter mistagógico, que leve os fiéis a penetrarem cada vez mais nos mistérios
que são celebrados.(186) Em concreto e antes de mais, há que afirmar que, devido à relação
entre a arte da celebração e a participação ativa, « a melhor catequese sobre a Eucaristia é a
própria Eucaristia bem celebrada »; (187) com efeito, por sua natureza a liturgia possui uma
eficácia pedagógica própria para introduzir os fiéis no conhecimento do mistério celebrado.
Por isso mesmo, na tradição mais antiga da Igreja, o caminho formativo do cristão —
embora sem descurar a
inteligência sistemática dos conteúdos da fé — assumia sempre um
caráter de experiência, em que era determinante o encontro vivo e persuasivo com Cristo
anunciado por autênticas testemunhas. Neste sentido, quem introduz nos mistérios é
primariamente a testemunha; depois, este encontro aprofunda-se, sem dúvida, na
catequese e encontra a sua fonte e ápice na celebração da Eucaristia. Desta estrutura
fundamental da experiência cristã parte a exigência de um itinerário mistagógico, no qual se
hão-de ter sempre presente três elementos:

a) Trata-se, primeiramente, da interpretação dos ritos à luz dos acontecimentos salvíficos,
em conformidade com a tradição viva da Igreja; de fato, a celebração da Eucaristia, na sua
riqueza infinita, possui contínuas referências à história da salvação. Em Cristo crucificado e
ressuscitado, podemos celebrar verdadeiramente o centro recapitulador de toda a realidade
(Ef 1, 10); desde o seu início, a comunidade cristã leu os acontecimentos da vida de Jesus, e
particularmente o mistério pascal, em relação com todo o percurso do Antigo Testamento.

b) Além disso, a catequese mistagógica há-de preocupar-se por introduzir no sentido dos
sinais contidos nos ritos; esta tarefa é particularmente urgente numa época
acentuadamente tecnológica como a atual, que corre o risco de perder a capacidade de
perceber os sinais e os símbolos. Mais do que informar, a catequese mistagógica deverá
despertar e educar a sensibilidade dos fiéis para a linguagem dos sinais e dos gestos que,
unidos à palavra, constituem o rito.

c) Enfim, a catequese mistagógica deve preocupar-se por mostrar o significado dos ritos
para a vida cristã em todas as suas dimensões: trabalho e compromisso, pensamentos e
afetos, atividade e repouso. Faz parte do itinerário mistagógico pôr em evidência a ligação
dos mistérios celebrados no rito com a responsabilidade missionária dos fiéis; neste sentido,
o fruto maduro da mistagogia é a consciência de que a própria vida vai sendo
progressivamente transformada pelos sagrados mistérios celebrados. Aliás, a finalidade de
toda a educação cristã é formar o fiel enquanto « homem novo » para uma fé adulta, que o
torne capaz de testemunhar no próprio ambiente a esperança cristã que o anima.

Condição necessária para se realizar, no âmbito das nossas comunidades eclesiais, esta
tarefa educativa é dispor de formadores adequadamente preparados; mas todo o povo de
Deus deve, sem dúvida, sentir-se comprometido nesta formação. Cada comunidade cristã é
chamada a ser lugar de introdução pedagógica aos mistérios que se celebram na fé; a
propósito, durante o Sínodo, os padres sublinharam a conveniência de um maior
envolvimento das comunidades de vida consagrada, movimentos e agregações que, pelo
próprio carisma, possam dar novo impulso à formação cristã.(188) Temos a certeza de que,
também no nosso tempo, o Espírito Santo não poupa a efusão dos seus dons para sustentar
a missão apostólica da Igreja, a quem compete difundir a fé e educá-la até à sua
maturidade.(189)

A reverência à Eucaristia

65. Um sinal convincente da eficácia que a catequese eucarística tem sobre os fiéis é
seguramente o crescimento neles do sentido do mistério de Deus presente entre nós;
podemos verificá-lo através de específicas manifestações de reverência à Eucaristia, nas
quais o percurso mistagógico deve introduzir os fiéis.(190) Penso, em geral, na importância
dos gestos e posições, como, por exemplo, ajoelhar-se durante os momentos salientes da
Oração Eucarística. Embora adaptando-se à legítima variedade de sinais que tem lugar no
contexto das diferentes culturas, cada um viva e exprima a consciência de encontrar-se, em
cada celebração, diante da majestade infinita de Deus, que chega até nós humildemente nos
sinais sacramentais.

Adoração e piedade eucarística

A relação intrínseca
entre celebração e adoração



66. Um dos momentos mais intensos do Sínodo vivemo-lo quando fomos à Basílica de São
Pedro, juntamente com muitos fiéis, fazer adoração eucarística. Com aquele momento de
oração, quis a assembléia dos bispos não se limitar às palavras na sua chamada de atenção
para a importância da relação intrínseca entre a celebração eucarística e a adoração. Neste
significativo aspecto da fé da Igreja, encontra-se um dos elementos decisivos do caminho
eclesial que se realizou após a renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II. Quando
a reforma dava os primeiros passos, aconteceu às vezes não se perceber com suficiente
clareza a relação intrínseca entre a Santa Missa e a adoração do Santíssimo Sacramento;
uma objeção então em voga, por exemplo, partia da idéia que o pão eucarístico nos fora
dado não para ser contemplado, mas comido. Ora, tal contraposição, vista à luz da
experiência de oração da Igreja, aparece realmente destituída de qualquer fundamento; já
Santo Agostinho dissera: « Nemo autem illam carnem manducat, nisi prius adoraverit; (...)
peccemus non adorando – ninguém come esta carne, sem antes a adorar; (...) pecaríamos se
não a adorássemos ».(191) De fato, na Eucaristia, o Filho de Deus vem ao nosso encontro e
deseja unir-Se connosco; a adoração eucarística é apenas o prolongamento visível da
celebração eucarística, a qual, em si mesma, é o maior ato de adoração da Igreja: (192)
receber a Eucaristia significa colocar-se em atitude de adoração d'Aquele que comungamos.
Precisamente assim, e apenas assim, é que nos tornamos um só com Ele e, de algum modo,
saboreamos antecipadamente a beleza da liturgia celeste. O ato de adoração fora da Santa
Missa prolonga e intensifica aquilo que se fez na própria celebração litúrgica. Com efeito, «
somente na adoração pode maturar um acolhimento profundo e verdadeiro. Precisamente
neste ato pessoal de encontro com o Senhor amadurece depois também a missão social, que
está encerrada na Eucaristia e deseja romper as barreiras não apenas entre o Senhor e nós
mesmos, mas também, e sobretudo, as barreiras que nos separam uns dos outros ».(193)

A prática da adoração eucarística

67. Juntamente com a assembléia sinodal, recomendo, pois, vivamente aos pastores da
Igreja e ao povo de Deus a prática da adoração eucarística tanto pessoal como
comunitária.(194) Para isso, será de grande proveito uma catequese específica na qual se
explique aos fiéis a importância deste ato de culto que permite viver, mais profundamente e
com maior fruto, a própria celebração litúrgica. Depois, na medida do possível e sobretudo
nos centros mais populosos, será conveniente individuar igrejas ou capelas que se possam
reservar propositadamente para a adoração perpétua. Além disso, recomendo que na
formação catequética, particularmente nos itinerários de preparação para a Primeira
Comunhão, se iniciem as crianças no sentido e na beleza de demorar-se na companhia de
Jesus, cultivando o enlevo pela sua presença na Eucaristia.
Quero exprimir, aqui, apreço e apoio a todos os institutos de vida consagrada, cujos
membros dedicam uma parte significativa do seu tempo à adoração eucarística; deste modo,
oferecem a todos o exemplo de pessoas que se deixam plasmar pela presença real do
Senhor. Desejo igualmente encorajar as associações de fiéis, nomeadamente as confrarias,
que assumem esta prática como seu compromisso especial, tornando-se assim fermento de
contemplação para toda a Igreja e apelo à centralidade de Cristo na vida dos indivíduos e da
comunidade.

Formas de devoção eucarística

68. O relacionamento pessoal que cada fiel estabelece com Jesus, presente na Eucaristia,
recondu-lo sempre ao conjunto da comunhão eclesial, alimentando nele a consciência da
sua pertença ao corpo de Cristo. Por isso, além de convidar cada um dos fiéis a encontrar
pessoalmente tempo para se demorar em oração diante do sacramento d
o altar, sinto o
dever de convidar as próprias paróquias e demais grupos eclesiais a promoverem momentos
de adoração comunitária. Obviamente, conservam todo o seu valor as formas já existentes
de devoção eucarística. Penso, por exemplo, nas procissões eucarísticas, sobretudo a
tradicional procissão na solenidade do Corpo de Deus, na devoção das Quarenta Horas, nos
congressos eucarísticos locais, nacionais e internacionais, e noutras iniciativas análogas.
Devidamente atualizadas e adaptadas às diversas circunstâncias, tais formas de devoção
merecem ser cultivadas ainda hoje.(195)

O lugar do sacrário na igreja

69. Ainda relacionado com a importância da reserva eucarística e da adoração e reverência
diante do sacramento do sacrifício de Cristo, o Sínodo dos Bispos interrogou-se sobre a
devida colocação do sacrário dentro das nossas igrejas.(196) Com efeito, uma correta
localização do mesmo ajuda a reconhecer a presença real de Cristo no Santíssimo
Sacramento; por isso, é necessário que o lugar onde são conservadas as espécies
eucarísticas seja fácil de individuar por qualquer pessoa que entre na igreja, graças
nomeadamente à lâmpada do Santíssimo perenemente acesa. Tendo em vista tal objetivo, é
preciso considerar a disposição arquitetônica do edifício sagrado: nas igrejas, onde não
existe a capela do Santíssimo Sacramento mas perdura o altar-mor com o sacrário, convém
continuar a valer-se de tal estrutura para a conservação e adoração da Eucaristia, evitando
porém colocar a cadeira do celebrante na sua frente. Nas novas igrejas, bom seria predispor
a capela do Santíssimo nas proximidades do presbitério; onde isso não for possível, é
preferível colocar o sacrário no presbitério, em lugar suficientemente elevado, no centro do
fecho absidal ou então noutro ponto onde fique de igual modo bem visível. Estas precauções
concorrem para conferir dignidade ao sacrário que deve ser cuidado sempre também sob o
perfil artístico. Obviamente, é necessário ter em conta também o que diz a propósito a
Instrução Geral do Missal Romano.(197) Em todo o caso, o juízo último sobre esta matéria
compete ao bispo diocesano.

III PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO VIVIDO


« Assim como o Pai, que vive,
Me enviou e Eu vivo pelo Pai,
também aquele que Me come
viverá por Mim » (Jo 6, 57)

Forma eucarística da vida cristã

O culto espiritual


70. O Senhor Jesus, que para nós Se fez alimento de verdade e amor, falando do dom da
sua vida assegura-nos: « Quem comer deste pão viverá eternamente » (Jo 6, 51). Mas, esta «
vida eterna » começa em nós, já agora, através da mudança que o dom eucarístico gera na
nossa vida: « Aquele que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). Estas palavras de Jesus
permitem-nos compreender que o mistério « acreditado » e « celebrado » possui em si mesmo
um tal dinamismo, que faz dele princípio de vida nova em nós e forma da existência cristã.
De fato, comungando o corpo e o sangue de Jesus Cristo, vamo-nos tornando participantes
da vida divina de modo sempre mais adulto e consciente. Vale aqui o mesmo que Santo
Agostinho afirma a propósito do Verbo (Logos) eterno, alimento da alma, quando, pondo em
evidência o caráter paradoxal deste alimento, o santo doutor imagina ouvi-Lo dizer: « Sou o
pão dos fortes; cresce e comer-Me-ás. Não Me transformarás em ti como ao alimento da tua
carne, mas mudar-te-ás em Mim ».(198) Com efeito, não é o alimento eucarístico que se
transforma em nós, mas somos nós que acabamos misteriosamente mudados por ele. Cristo
alimenta-nos, unindo-nos a Si; « atrai-nos para dentro de Si ».(199)

A celebração eucarística surge aqui em toda a sua força como fonte e ápice da existência
eclesial, enquanto exprime a origem e simultaneamente a realização do culto novo e
definitivo, o culto espiritual (logiké latreía).(200) As palavras que encontramos sobre isto, na
Carta de São Paulo aos R
omanos, são a formulação mais sintética do modo como a
Eucaristia transforma toda a nossa vida em culto espiritual agradável a Deus: « Peço-vos,
irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo,
santo, agradável a Deus. Tal é o culto espiritual que Lhe deveis prestar » (12, 1). Nesta
exortação, aparece a imagem do novo culto como oferta total da própria pessoa em
comunhão com toda a Igreja. A insistência do Apóstolo sobre a oferta dos nossos corpos
sublinha o concretismo humano dum culto de forma alguma desencarnado. E, a propósito,
o santo de Hipona lembra-nos que « este é o sacrifício dos cristãos, ou seja, serem muitos e
um só corpo em Cristo. A Igreja celebra este mistério através do sacramento do altar, que os
fiéis bem conhecem e no qual se lhes mostra claramente que, naquilo que se oferece, ela
mesma é oferecida ».(201) De fato, a doutrina católica afirma que a Eucaristia, enquanto
sacrifício de Cristo, é também sacrifício da Igreja e, conseqüentemente, dos fiéis.(202) Esta
insistência sobre o sacrifício — sacrum facere, « tornar sagrado » — exprime aqui toda a
densidade existencial que está implicada na transformação da nossa realidade humana
alcançada por Cristo (Fil 3, 12).

Eficácia omnicompreensiva
do culto eucarístico


71. O novo culto cristão engloba todos os aspectos da existência, transfigurando-a: «
Quando comeis ou bebeis, ou fazeis qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus » (1
Cor 10, 31). Em cada ato da sua vida, o cristão é chamado a manifestar o verdadeiro culto a
Deus; daqui toma forma a natureza intrinsecamente eucarística da vida cristã. Uma vez que
abraça a realidade humana do crente em seu concretismo quotidiano, a Eucaristia torna
possível dia após dia a progressiva transfiguração do homem, por graça chamado a ser
conforme à imagem do Filho de Deus (Rm 8, 29s). Nada há de autenticamente humano —
pensamentos e afetos, palavras e obras — que não encontre no sacramento da Eucaristia a
forma adequada para ser vivido em plenitude. Sobressai aqui todo o valor antropológico da
novidade radical trazida por Cristo com a Eucaristia: o culto a Deus na existência humana
não pode ser relegado para um momento particular e privado, mas tende, por sua natureza,
a permear cada aspecto da realidade do indivíduo. Assim, o culto agradável a Deus torna-se
uma nova maneira de viver todas as circunstâncias da existência, na qual cada particular
fica exaltado porque vivido dentro do relacionamento com Cristo e como oferta a Deus. A
glória de Deus é o homem vivo (1 Cor 10, 31); e a vida do homem é a visão de Deus.(203)

Viver segundo o domingo

72. Esta novidade radical, que a Eucaristia introduz na vida do homem, revelou-se à
consciência cristã desde o princípio; prontamente os fiéis compreenderam a influência
profunda que a celebração eucarística exercia sobre o estilo da sua vida. Santo Inácio de
Antioquia exprimia esta verdade designando os cristãos como « aqueles que chegaram à
nova esperança », e apresentava-os como aqueles que vivem « segundo o domingo » (iuxta
dominicam viventes).(204) Esta expressão do grande mártir antioqueno põe claramente em
evidência a ligação entre a realidade eucarística e a vida cristã no seu dia-a-dia. O costume
caráterístico que têm os cristãos de reunir-se no primeiro dia depois do sábado para
celebrar a ressurreição de Cristo — conforme a narração do mártir São Justino(205) — é
também o dado que define a forma da vida renovada pelo encontro com Cristo. Mas, a
expressão de Santo Inácio — « viver segundo o domingo » — sublinha também o valor
paradigmático que este dia santo tem para os restantes dias da semana. De fato, o domingo
não se distingue com base na simples suspensão das atividades habituais, como se fosse
uma espécie de parêntesis dentro do ritmo normal dos dias; os cristãos sempre sentiram
este dia como o primeiro da
semana, porque nele se faz memória da novidade radical trazida
por Cristo. Por isso, o domingo é o dia em que o cristão reencontra a forma eucarística
própria da sua existência, segundo a qual é chamado a viver constantemente: « viver
segundo o domingo » significa viver consciente da libertação trazida por Cristo e realizar a
própria existência como oferta de si mesmo a Deus, para que a sua vitória se manifeste
plenamente a todos os homens através duma conduta intimamente renovada.

Viver o preceito dominical

73. Cientes deste princípio novo de vida que a Eucaristia deposita no cristão, os padres
sinodais reafirmaram a importância que tem, para todos os fiéis, o preceito dominical como
fonte de liberdade autêntica, a fim de poderem viver cada um dos outros dias segundo o que
celebraram no « dia do Senhor ». Com efeito, a vida de fé corre perigo quando se deixa de
sentir desejo de participar na celebração eucarística em que se faz memória da vitória
pascal. A participação na assembléia litúrgica dominical, ao lado de todos os irmãos e irmãs
com os quais se forma um só corpo em Cristo Jesus, é exigida pela consciência cristã e
simultaneamente educa a consciência cristã. Perder o sentido do domingo como dia do
Senhor que deve ser santificado é sintoma duma perda do sentido autêntico da liberdade
cristã, a liberdade dos filhos de Deus.(206) Continuam a ser preciosas as observações feitas
a este respeito pelo meu venerado predecessor João Paulo II, na Carta Apostólica Dies
Domini,(207) quando trata das diversas dimensões que o domingo tem para os cristãos: é
dies Domini, em referimento à obra da criação; dies Christi, enquanto dia da nova criação e
do dom do Espírito Santo que o Senhor Ressuscitado concede; dies Ecclesiæ, como dia em
que a comunidade cristã se reúne para a celebração; dies hominis, porque dia de alegria,
repouso e caridade fraterna.

Um tal dia aparece, assim, como festa primordial em que todo o fiel, no próprio ambiente
onde vive, se pode fazer arauto e guardião do sentido do tempo. Deste dia, com efeito, brota
o sentido cristão da existência e uma nova maneira de viver o tempo, as relações, o
trabalho, a vida e a morte. Por isso, é bom que, no dia do Senhor, as realidades eclesiais
organizem, a partir da celebração eucarística dominical, manifestações próprias da
comunidade cristã: encontros de amizade, iniciativas para a formação de crianças, jovens e
adultos na fé, peregrinações, obras de caridade e momentos variados de oração. Por causa
destes valores tão importantes — embora justamente a tarde de sábado a partir das
primeiras Vésperas já pertença ao domingo, sendo permitido cumprir nela o preceito
dominical — é necessário recordar que é o domingo em si mesmo que merece ser
santificado, para que não acabe por ficar um dia « vazio de Deus ».(208)

O sentido do repouso e do trabalho

74. É particularmente urgente no nosso tempo lembrar que o dia do Senhor é também o dia
de repouso do trabalho. Desejamos vivamente que isto mesmo seja reconhecido também
pela sociedade civil, de modo que se possa ficar livre das obrigações laborais sem ser
penalizado por isso. De fato, os cristãos — não sem relação com o significado do sábado na
tradição hebraica — viram no dia do Senhor também o dia de repouso da fadiga quotidiana.
Isto possui um significado bem preciso, ou seja, constitui uma relativização do trabalho, que
tem por finalidade o homem: o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho. É
fácil intuir a tutela que isto oferece ao próprio homem, ficando assim emancipado duma
possível forma de escravidão. Como já tive ocasião de afirmar, « o trabalho reveste uma
importância primária para a realização do homem e o progresso da sociedade; por isso
torna-se necessário que aquele seja sempre organizado e realizado no pleno respeito da
dignidade humana e ao serviço do bem comum. Ao mesmo tempo, é indispe
nsável que o
homem não se deixe escravizar pelo trabalho, que não o idolatre pretendendo achar nele o
sentido último e definitivo da vida ».(209) É no dia consagrado a Deus que o homem
compreende o sentido da sua existência e também do trabalho.(210)

Assembléias dominicais na ausência de sacerdote

75. Uma vez descoberto o significado da celebração dominical para a vida do cristão, coloca-
se espontaneamente o problema das comunidades cristãs onde falta o sacerdote e,
conseqüentemente, não é possível celebrar a Santa Missa no dia do Senhor. A tal respeito,
convém reconhecer que nos encontramos perante situações muito diversificadas entre si.
Antes de mais, o Sínodo recomendou aos fiéis que fossem a uma das igrejas da diocese onde
está garantida a presença do sacerdote, mesmo que isso lhes exija um pouco de
sacrifício.(211) Entretanto, nos casos em que se torne praticamente impossível, devido à
grande distância, a participação na Eucaristia dominical, é importante que as comunidades
cristãs se reúnam igualmente para louvar o Senhor e fazer memória do dia a Ele dedicado.
Mas, isso deverá verificar-se a partir duma conveniente instrução sobre a diferença entre a
Santa Missa e as assembléias dominicais à espera de sacerdote. A solicitude pastoral da
Igreja há-de exprimir-se, neste caso, vigiando que a liturgia da palavra — organizada sob a
guia dum diácono ou dum responsável da comunidade a quem foi regularmente confiado
este ministério pela autoridade competente — se realize segundo um ritual específico
elaborado pelas Conferências Episcopais e para tal fim aprovado por elas.(212) Lembro que
compete aos Ordinários conceder a faculdade de distribuir a comunhão nessas liturgias,
ponderando atentamente a conveniência da escolha a fazer. Além disso, tudo deve ser feito
de forma que tais assembléias não criem confusão quanto ao papel central do sacerdote e à
dimensão sacramental na vida da Igreja. A importância da função dos leigos, a quem
justamente há que agradecer a generosidade ao serviço das comunidades cristãs, jamais
deve ofuscar o ministério insubstituível dos sacerdotes na vida da Igreja.(213) Por isso,
vigie-se atentamente sobre as assembléias à espera de sacerdote para que não dêem lugar a
visões eclesiológicas incompatíveis com a verdade do Evangelho e a tradição da Igreja;
devem antes tornar-se ocasiões privilegiadas de oração a Deus para que mande sacerdotes
santos segundo o seu Coração. A propósito, vale a pena recordar aquilo que escreveu o Papa
João Paulo II na Carta aos Sacerdotes por ocasião da Quinta-feira Santa de 1979,
recordando o caso comovente que se verificava em certos lugares onde as pessoas, privadas
de sacerdote pelo regime ditatorial, se reuniam numa igreja ou num santuário, colocavam
sobre o altar a estola que ainda conservavam e recitavam as orações da liturgia eucarística
até ao « momento que corresponderia à transubstanciação » e aí se detinham em silêncio,
dando testemunho de quão « ardentemente desejavam ouvir aquelas palavras que só os
lábios dum sacerdote podiam eficazmente pronunciar ».(214) Precisamente nesta
perspectiva, considerando o bem incomparável que deriva da celebração do sacrifício
eucarístico, peço a todos os sacerdotes uma efectiva e concreta disponibilidade para
visitarem, com a maior assiduidade possível, as comunidades que estão confiadas ao seu
cuidado pastoral, a fim de não ficarem demasiado tempo sem o sacramento da caridade.

Uma forma eucarística da existência cristã,
a pertença eclesial


76. A importância do domingo como dia da Igreja (dies Ecclesiæ) traz-nos à mente a relação
intrínseca entre a vitória de Jesus sobre o mal e a morte e a nossa pertença ao seu corpo
eclesial; no dia do Senhor, com efeito, todo o cristão reencontra também a dimensão
comunitária da sua existência redimida. Participar na ação litúrgica, comungar o corpo e o
sangue de Cristo signific
a, ao mesmo tempo, tornar cada vez mais íntima e profunda a
própria pertença Àquele que morreu por nós (1 Cor 6, 19s; 7, 23). Verdadeiramente quem se
nutre de Cristo, vive por Ele. Compreende-se o sentido profundo da comunhão dos santos
(communio sanctorum), relacionando-a com o mistério eucarístico. A comunhão tem sempre
e inseparavelmente uma conotação vertical e uma horizontal: comunhão com Deus e
comunhão com os irmãos e irmãs. Estas duas dimensões encontram-se misteriosamente no
dom eucarístico. « Onde se destrói a comunhão com Deus, que é comunhão com o Pai, com
o Filho e com o Espírito Santo, destrói-se também a raiz e a fonte da comunhão entre nós. E
onde a comunhão entre nós não for vivida, também a comunhão com o Deus-Trindade não é
viva nem verdadeira ».(215) Chamados, pois, a ser membros de Cristo e conseqüentemente
membros uns dos outros (1 Cor 12, 27), constituímos uma realidade ontologicamente
fundada no Batismo e alimentada pela Eucaristia, realidade essa que exige ter expressão
sensível na vida das nossas comunidades.

A forma eucarística da vida cristã é, sem dúvida, eclesial e comunitária. Através da diocese e
das paróquias, enquanto estruturas basilares da Igreja num território particular, cada fiel
pode fazer experiência concreta da sua pertença ao corpo de Cristo. As associações, os
movimentos eclesiais e novas comunidades — com a vivacidade dos carismas que lhes
foram concedidos pelo Espírito Santo para o nosso tempo — bem como os institutos de vida
consagrada têm a missão de oferecer a sua contribuição específica para favorecer nos fiéis a
percepção desta sua pertença ao Senhor (Rm 14, 8). O fenómeno da secularização, que
apresenta — não por acaso — traços fortemente individualistas, logra seus efeitos deletérios
sobretudo nas pessoas que se isolam por escasso sentido de pertença. Desde os seus
inícios, sempre o cristianismo implica uma companhia, uma trama de relações
continuamente vivificadas pela escuta da palavra e pela celebração eucarística e animadas
pelo Espírito Santo.

Espiritualidade e cultura eucarística

77. Os padres sinodais afirmaram, significativamente, que « os fiéis cristãos precisam duma
compreensão mais profunda das relações entre a Eucaristia e a vida quotidiana. A
espiritualidade eucarística não é apenas participação na Missa e devoção ao Santíssimo
Sacramento; mas abraça a vida inteira ».(216) Um tal realce assume atualmente particular
significado para todos nós; é preciso reconhecer que um dos efeitos mais graves da
secularização, há pouco mencionada, é ter relegado a fé cristã para a margem da existência,
como se fosse inútil para a realização concreta da vida dos homens; a falência desta
maneira de viver « como se Deus não existisse » está agora patente a todos. Hoje torna-se
necessário redescobrir que Jesus Cristo não é uma simples convicção privada ou uma
doutrina abstrata, mas uma pessoa real cuja inserção na história é capaz de renovar a vida
de todos. Por isso, a Eucaristia, enquanto fonte e ápice da vida e missão da Igreja, deve
traduzir-se em espiritualidade, em vida « segundo o Espírito » (Rm 8, 4s; cf. Gal 5, 16.25). É
significativo que São Paulo, na passagem da Carta aos Romanos onde convida a viver o novo
culto espiritual, apele ao mesmo tempo para a necessidade de mudar a própria forma de
viver e pensar: « Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação
da vossa mente, para saberdes discernir, segundo a vontade de Deus, o que é bom, o que
Lhe é agradável, o que é perfeito » (12, 2). Deste modo, o Apóstolo das Gentes põe em
evidência a ligação entre o verdadeiro culto espiritual e a necessidade duma nova maneira
de compreender a existência e orientar a vida. Constitui parte integrante da forma
eucarística da vida cristã a renovação da mentalidade, pois « assim já não seremos crianças
inconstantes, levadas ao sabor de todo o vento de doutrina »
(Ef 4, 14).

Eucaristia e evangelização das culturas

78. Daquilo que ficou dito, segue-se que o mistério eucarístico nos põe em diálogo com as
várias culturas, mas de certa forma também as desafia.(217) É preciso reconhecer o caráter
intercultural deste novo culto, desta logiké latreía: a presença de Jesus Cristo e a efusão do
Espírito Santo são acontecimentos que podem encontrar-se de forma duradoura com
qualquer realidade cultural a fim de a fermentar evangelicamente. Em consequência disto
mesmo, temos a obrigação de promover convictamente a evangelização das culturas, na
certeza de que o próprio Cristo é a verdade de todo o homem e da história humana inteira. A
Eucaristia torna-se critério de valorização de tudo o que o cristão encontra nas diversas
expressões culturais; num processo importante como este, podem revelar-se de grande
significado as palavras de São Paulo quando, na sua I Carta aos Tessalonicenses, convida a
« avaliar tudo e conservar o que for bom » (5, 21).

Eucaristia e fiéis leigos

79. Em Cristo, cabeça da Igreja seu corpo, todos os cristãos formam uma « raça eleita,
sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para anunciar os louvores d'Aquele
que os chamou das trevas à sua luz admirável » (1 Pd 2, 9). A Eucaristia, enquanto mistério
a ser vivido, oferece-se a cada um de nós na condição concreta em que nos encontramos,
fazendo com que esta mesma situação vital se torne um lugar onde viver diariamente a
novidade cristã. Se o sacrifício eucarístico alimenta e faz crescer em nós tudo o que já nos
foi dado no Batismo, pelo qual todos somos chamados à santidade,(218) então isso deve
transparecer e manifestar-se precisamente nas situações ou estados de vida em que cada
cristão se encontra; tornamo-nos dia após dia culto agradável a Deus, vivendo a própria
vida como vocação. O próprio sacramento da Eucaristia, a partir da convocação litúrgica,
compromete-nos na realidade quotidiana a fim de que tudo seja feito para glória de Deus.

E, dado que o mundo é « o campo » (Mt 13, 38) onde Deus coloca os seus filhos como boa
semente, os cristãos leigos, em virtude do Batismo e da Confirmação e corroborados pela
Eucaristia, são chamados a viver a novidade radical trazida por Cristo precisamente no meio
das condições normais da vida; (219) devem cultivar o desejo de ver a Eucaristia influir cada
vez mais profundamente na sua existência quotidiana, levando-os a serem testemunhas
reconhecidas como tais no próprio ambiente de trabalho e na sociedade inteira.(220) Dirijo
um particular encorajamento às famílias a haurirem inspiração e força deste sacramento: o
amor entre o homem e a mulher, o acolhimento da vida, a missão educadora aparecem
como âmbitos privilegiados onde a Eucaristia pode mostrar a sua capacidade de
transformar e encher de significado a existência.(221) Os pastores nunca deixem de apoiar,
educar e encorajar os fiéis leigos a viverem plenamente a própria vocação à santidade no
meio deste mundo que Deus amou até ao ponto de dar o Filho para sua salvação (Jo 3, 16).

Eucaristia e espiritualidade sacerdotal

80. A forma eucarística da existência cristã manifesta-se, sem dúvida, de modo particular
no estado de vida sacerdotal. A espiritualidade sacerdotal é intrinsecamente eucarística; a
semente desta espiritualidade encontra-se já nas palavras que o bispo pronuncia na liturgia
da ordenação: « Recebe a oferenda do povo santo para a apresentares a Deus. Toma
consciência do que virás a fazer; imita o que virás a realizar, e conforma a tua vida com o
mistério da cruz do Senhor ».(222) Para conferir à sua existência uma forma eucarística
cada vez mais perfeita, o sacerdote deve reservar, já no período de formação e depois nos
anos sucessivos, amplo espaço para a vida espiritual.(223) É chamado a ser continuamente
um autêntico perscrutador de Deus, embora ao mesmo tempo permaneça solidá
rio com as
preocupações dos homens. Uma vida espiritual intensa permitir-lhe-á entrar mais
profundamente em comunhão com o Senhor e ajudá-lo-á a deixar-se possuir pelo amor de
Deus, tornando-se sua testemunha em todas as circunstâncias mesmo difíceis e obscuras.
Para isso, juntamente com os padres do Sínodo, recomendo aos sacerdotes « a celebração
diária da Santa Missa, mesmo quando não houver participação de fiéis ».(224) Tal
recomendação é ditada, ante de mais, pelo valor objetivamente infinito de cada celebração
eucarística; e é motivada ainda pela sua singular eficácia espiritual, porque, se vivida com
atenção e fé, a Santa Missa é formadora no sentido mais profundo do termo, enquanto
promove a configuração a Cristo e reforça o sacerdote na sua vocação.

Eucaristia e vida consagrada

81. No contexto da relação entre a Eucaristia e as diversas vocações eclesiais, refulge de
modo particular « o testemunho profético de mulheres e homens consagrados que
encontram, na celebração eucarística e na adoração, a força para o seguimento radical de
Cristo obediente, pobre e casto ».(225) Embora realizem muitos serviços no campo da
formação humana e do cuidado pelos pobres, no ensino ou na assistência aos doentes, os
consagrados e consagradas sabem que a finalidade principal da sua vida é « a contemplação
das coisas divinas e a união assídua com Deus »;(226 a contribuição essencial que a Igreja
espera da vida consagrada destina-se muito mais ao ser do que ao fazer. Neste contexto,
queria evocar a importância do testemunho virginal precisamente em relação ao mistério da
Eucaristia; com efeito, além da ligação com o celibato sacerdotal, o mistério eucarístico
apresenta uma relação intrínseca com a virgindade consagrada, enquanto esta é expressão
da dedicação exclusiva da Igreja a Cristo, que ela acolhe como seu Esposo com radical e
fecunda fidelidade.227) Na Eucaristia, a virgindade consagrada encontra inspiração e
nutrimento para a sua dedicação total a Cristo; além disso, aufere da Eucaristia conforto e
impulso para ser, no nosso tempo também, sinal do amor gratuito e fecundo que Deus tem
pela humanidade. Enfim, é através do seu testemunho específico que a vida consagrada se
torna objetivamente apelo e antecipação daquelas « núpcias do Cordeiro » (Ap 19, 7-9) que
constituem a meta de toda a história da salvação; neste sentido, aquela constitui uma
evocação eficaz do horizonte escatológico de que o homem necessita para poder orientar as
suas opções e resoluções de vida.

Eucaristia e transformação moral

82. Descoberta a beleza da forma eucarística da existência cristã, somos levados a refletir
também sobre as energias morais que, por tal forma, se desencadeiam em apoio da
liberdade autêntica e própria dos filhos de Deus. Desejo, assim, retomar um assunto que
surgiu no Sínodo: a ligação entre forma eucarística da vida e transformação moral. O Papa
João Paulo II afirmara que a vida moral « possui o valor de um ''culto espiritual'' (Rm 12, 1;
cf. Fil 3, 3), que brota e se alimenta daquela fonte inesgotável de santidade e glorificação de
Deus que são os sacramentos, especialmente a Eucaristia: com efeito, ao participar no
sacrifício da cruz, o cristão comunga do amor de doação de Cristo, ficando habilitado e
comprometido a viver esta mesma caridade em todas as suas atitudes e comportamentos de
vida ».(228) Em suma, « no próprio ''culto'', na comunhão eucarística, está contido o ser
amado e o amar por sua vez os outros. Uma Eucaristia que não se traduza em amor
concretamente vivido é em si mesma fragmentária ».(229)

Este apelo ao valor moral do culto espiritual não deve ser interpretado em chave moralista;
é, antes de mais, a descoberta feliz do dinamismo do amor no coração de quem acolhe o
dom do Senhor, abandona-se a Ele e encontra a verdadeira liberdade. A transformação
moral, que o novo culto instituído por Cristo implic
a, é uma tensão e um anseio profundo de
querer corresponder ao amor do Senhor com todo o próprio ser, embora conscientes da
própria fragilidade. Aquilo de que estamos a falar aparece claramente no relato evangélico
de Zaqueu (Lc 19, 1-10): depois de ter hospedado Jesus na sua casa, o publicano sente-se
completamente transformado; decide dar metade dos seus haveres aos pobres e restituir
quatro vezes mais a quem roubou. A tensão moral, que nasce do ato de hospedar Jesus na
nossa vida, brota da gratidão por se ter experimentado a imerecida proximidade do Senhor.

Coerência eucarística

83. É importante salientar aquilo que os padres sinodais designaram por coerência
eucarística, à qual está objetivamente chamada a nossa existência. Com efeito, o culto
agradável a Deus nunca é um ato meramente privado, sem conseqüências nas nossas
relações sociais: requer o testemunho público da própria fé. Evidentemente isto vale para
todos os batizados, mas impõe-se com particular premência a quantos, pela posição social
ou política que ocupam, devem tomar decisões sobre valores fundamentais como o respeito
e defesa da vida humana desde a concepção até à morte natural, a família fundada sobre o
matrimônio entre um homem e uma mulher, a liberdade de educação dos filhos e a
promoção do bem comum em todas as suas formas.(230) Estes são valores não negociáveis.
Por isso, cientes da sua grave responsabilidade social, os políticos e os legisladores católicos
devem sentir-se particularmente interpelados pela sua consciência retamente formada a
apresentar e apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza humana.(231) Tudo
isto tem, aliás, uma ligação objetiva com a Eucaristia (1 Cor 11, 27-29). Os bispos são
obrigados a recordar sem cessar tais valores; faz parte da sua responsabilidade pelo
rebanho que lhes foi confiado.(232)

Eucaristia, mistério anunciado
Eucaristia e missão


84. Na homilia durante a celebração eucarística com que solenemente dei início ao meu
ministério na Cátedra de Pedro, disse: « Não há nada de mais belo do que ser alcançado,
surpreendido pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada de mais belo do que conhecê-Lo e
comunicar aos outros a amizade com Ele ».(233) Esta afirmação cresce de intensidade,
quando pensamos no mistério eucarístico; com efeito, não podemos reservar para nós o
amor que celebramos neste sacramento: por sua natureza, pede para ser comunicado a
todos. Aquilo de que o mundo tem necessidade é do amor de Deus, é de encontrar Cristo e
acreditar n'Ele. Por isso, a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da Igreja, mas também
da sua missão: « Uma Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja missionária ».(234)
Havemos, também nós, de poder dizer com convicção aos nossos irmãos: « Nós vos
anunciamos o que vimos e ouvimos, para que estejais também em comunhão conosco » (1
Jo 1, 2-3). Verdadeiramente não há nada de mais belo do que encontrar e comunicar Cristo
a todos! Aliás, a própria instituição da Eucaristia antecipa aquilo que constitui o cerne da
missão de Jesus: Ele é o enviado do Pai para a redenção do mundo (Jo 3, 16-17; Rm 8, 32).
Na Última Ceia, Jesus entrega aos seus discípulos o sacramento que atualiza o sacrifício
que Ele, em obediência ao Pai, fez de Si mesmo pela salvação de todos nós. Não podemos
abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão
que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os homens; assim, a tensão
missionária é parte constitutiva da forma eucarística da existência cristã.

Eucaristia e testemunho

85. A missão primeira e fundamental, que deriva dos santos mistérios celebrados, é dar
testemunho com a nossa vida. O enlevo pelo dom que Deus nos concedeu em Cristo,
imprime à nossa existência um dinamismo novo que nos compromete a ser testemunhas do
seu amor. Tornamo-nos testemunhas quando, através das nos
sas ações, palavras e modo
de ser, é Outro que aparece e Se comunica. Pode-se afirmar que o testemunho é o meio pelo
qual a verdade do amor de Deus alcança o homem na história, convidando-o a acolher
livremente esta novidade radical. No testemunho, Deus expõe-Se por assim dizer ao risco da
liberdade do homem. O próprio Jesus é a testemunha fiel e verdadeira (Ap 1, 5; 3, 14); veio
para dar testemunho da verdade (Jo 18, 37). Nesta ordem de idéias, apraz-me retomar um
conceito caro aos primeiros cristãos mas que nos interpela também a nós, cristãos de hoje:
o testemunho até ao dom de si mesmo, até ao martírio, sempre foi considerado, na história
da Igreja, o apogeu do novo culto espiritual: « Oferecei os vossos corpos » (Rm 12, 1). Pense-
se, por exemplo, na narração do martírio de São Policarpo de Esmirna, discípulo de São
João: o seu caso, dramático, é todo ele descrito como uma liturgia; mais ainda, como se o
próprio mártir se tornasse Eucaristia.(235) Pensemos também na consciência eucarística
que Inácio de Antioquia exprime tendo em mente o seu martírio: considera-se « trigo de
Deus » e, pelo martírio, deseja transformar-se em « pão puro de Cristo ».(236) O cristão,
quando oferece a sua vida no martírio, entra em plena comunhão com a páscoa de Jesus
Cristo e, assim, ele mesmo se torna Eucaristia com Cristo. Não faltam, ainda hoje, à Igreja
os mártires, nos quais se manifesta de modo supremo o amor de Deus. E, mesmo que não
nos seja pedida a prova do martírio, sabemos, porém, que o culto agradável a Deus postula
intimamente esta disponibilidade (237) e encontra a sua realização no feliz e convicto
testemunho perante o mundo duma vida cristã coerente nos diversos sectores onde o
Senhor nos chama a anunciá-Lo.

Jesus Cristo, único Salvador

86. Sublinhar a ligação intrínseca entre Eucaristia e missão faz-nos descobrir também o
conteúdo supremo do nosso anúncio. Quanto mais vivo for o amor pela Eucaristia no
coração do povo cristão, tanto mais clara lhe será a incumbência da missão: levar Cristo;
não meramente uma idéia ou uma ética n'Ele inspirada, mas o dom da sua própria Pessoa.
Quem não comunica a verdade do Amor ao irmão, ainda não deu bastante. A Eucaristia
enquanto sacramento da nossa salvação chama-nos assim, inevitavelmente, à unicidade de
Cristo e da salvação por Ele realizada a preço do seu sangue. Por isso, do mistério
eucarístico acreditado e celebrado nasce a exigência de educar constantemente a todos para
o trabalho missionário, cujo centro é o anúncio de Jesus, único Salvador.(238) Isto impedirá
de confinar, em chave meramente sociológica, a obra decisiva de promoção humana que
todo o processo de evangelização autêntico sempre implica.

Liberdade de culto

87. Neste contexto, desejo dar voz àquilo que os padres referiram, durante a assembléia
sinodal, a propósito das graves dificuldades criadas à missão das comunidades cristãs que
vivem em condições de minoria ou mesmo de privação da liberdade religiosa.(239) Devemos
verdadeiramente dar graças ao Senhor por todos os bispos, sacerdotes, pessoas
consagradas e leigos que se prodigalizam a anunciar o Evangelho e vivem a sua fé sob risco
da própria vida. Não são poucas as regiões do mundo onde o simples ir à igreja constitui um
testemunho heróico que expõe a vida da pessoa à marginalização e à violência. Nesta
ocasião, quero também reiterar a solidariedade da Igreja inteira a quantos sofrem por falta
de liberdade de culto. Nos lugares onde não há a liberdade religiosa, sabemos que falta, no
fim de contas, a liberdade mais significativa, pois é na fé que o homem exprime a decisão
íntima relativa ao sentido último da própria existência; por isso, rezemos para que se
alargue o espaço da liberdade religiosa em todos os Estados, a fim de os cristãos e os
membros das outras religiões poderem livremente viver as suas convicções, pessoalmente e
em comunidade.



Eucaristia, mistério oferecido ao mundo

Eucaristia, pão repartido para a vida do mundo


88. « O pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo » (Jo 6, 51).
Com estas palavras, o Senhor revela o verdadeiro significado do dom da sua vida por todos
os homens; as mesmas mostram-nos também a compaixão íntima que Ele sente por cada
pessoa. Na realidade, os Evangelhos transmitem-nos muitas vezes os sentimentos de Jesus
para com as pessoas, especialmente doentes e pecadores (Mt 20, 34; Mc 6, 34; Lc 19, 41).
Ele exprime, através dum sentimento profundamente humano, a intenção salvífica de Deus
que deseja que todo o homem alcance a verdadeira vida. Cada celebração eucarística
atualiza sacramentalmente a doação que Jesus fez da sua própria vida na cruz por nós e
pelo mundo inteiro. Ao mesmo tempo, na Eucaristia, Jesus faz de nós testemunhas da
compaixão de Deus por cada irmão e irmã; nasce assim, à volta do mistério eucarístico, o
serviço da caridade para com o próximo, que « consiste precisamente no fato de eu amar, em
Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é
possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou
comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então aprendo a ver aquela
pessoa já não somente com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de
Jesus Cristo ».(240) Desta forma, nas pessoas que contato, reconheço irmãs e irmãos, pelos
quais o Senhor deu a sua vida amando-os « até ao fim » (Jo 13, 1). Por conseguinte, as
nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem conscientizar-se cada vez mais
de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a Eucaristia impele todo o que acredita
n'Ele a fazer-se « pão repartido » para os outros e, conseqüentemente, a empenhar-se por
um mundo mais justo e fraterno. Como sucedeu na multiplicação dos pães e dos peixes,
temos de reconhecer que Cristo continua, ainda hoje, exortando os seus discípulos a
empenharem-se pessoalmente: « Dai-lhes vós de comer » (Mt 14, 16). Na verdade, a vocação
de cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão repartido para a vida do mundo.

As implicações sociais do mistério eucarístico

89. A união com Cristo, que se realiza no sacramento, habilita-nos também a uma novidade
de relações sociais: « a ''mística'' do sacramento tem um caráter social, porque (...) a união
com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele Se entrega. Eu não
posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se
tornaram ou hão-de tornar Seus ».(241) A propósito, é necessário explicitar a relação entre
mistério eucarístico e compromisso social. A Eucaristia é sacramento de comunhão entre
irmãos e irmãs que aceitam reconciliar-se em Cristo, o Qual fez de judeus e gentios um só
povo, destruindo o muro de inimizade que os separava (Ef 2, 14). Somente esta tensão
constante à reconciliação permite comungar dignamente o corpo e o sangue de Cristo (Mt 5,
23-24).(242) Através do memorial do seu sacrifício, Ele reforça a comunhão entre os irmãos
e, de modo particular, estimula os que estão em conflito a apressar a sua reconciliação,
abrindo-se ao diálogo e ao compromisso em prol da justiça. A restauração da justiça, a
reconciliação e o perdão são, sem dúvida alguma, condições para construir uma verdadeira
paz; (243) desta consciência nasce a vontade de transformar também as estruturas injustas,
a fim de se restabelecer o respeito da dignidade do homem, criado à imagem e semelhança
de Deus; é através da realização concreta desta responsabilidade que a Eucaristia se torna
na vida o que significa na celebração. Como já tive ocasião de afirmar, não é missão própria
da Igreja tomar nas suas mãos a batalha política para se realizar a sociedade mais justa
possível; todavia, ela não pode nem deve ficar à margem d
a luta pela justiça. A Igreja « deve
inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem
as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem
prosperar ».(244)

Na perspectiva da responsabilidade social de todos os cristãos, os padres sinodais
lembraram que o sacrifício de Cristo é mistério de libertação que nos interpela e provoca
continuamente; dirijo, pois, um apelo a todos os fiéis para que se tornem realmente obreiros
de paz e justiça: « Com efeito, quem participa na Eucaristia deve empenhar-se na edificação
da paz neste nosso mundo marcado por muitas violências e guerras, e, hoje de modo
particular, pelo terrorismo, a corrupção econômica e a exploração sexual »;(245) problemas,
estes, que geram por sua vez outros fenômenos degradantes que causam viva preocupação.
Sabemos que estas situações não podem ser encaradas de modo superficial. Precisamente
em virtude do mistério que celebramos, é preciso denunciar as circunstâncias que estão em
contraste com a dignidade do homem, pelo qual Cristo derramou o seu sangue, afirmando
assim o alto valor de cada pessoa.

O alimento da verdade
e a indigência do homem


90. Não podemos ficar inativos perante certos processos de globalização, que não raro fazem
crescer desmesuradamente a distância entre ricos e pobres a nível mundial. Devemos
denunciar quem delapida as riquezas da terra, provocando desigualdades que bradam ao
céu (Tg 5, 4). Por exemplo, é impossível calar diante das « imagens impressionantes dos
grandes campos de deslocados ou refugiados — em várias partes do mundo — amontoados
em condições precárias para escapar a sorte pior, mas carecidos de tudo. Porventura estes
seres humanos não são nossos irmãos e irmãs? Os seus filhos não vieram ao mundo com os
mesmos legítimos anseios de felicidade que os outros? ».(246) O Senhor Jesus, pão de vida
eterna, incita a tornarmo-nos atentos às situações de indigência em que ainda vive grande
parte da humanidade: são situações cuja causa se fica a dever, freqüentemente, a uma clara
e preocupante responsabilidade dos homens. De fato, « com base em dados estatísticos
disponíveis, pode-se afirmar que bastaria menos de metade das somas imensas globalmente
destinadas a armamentos para tirar, de forma estável, da indigência o exército ilimitado dos
pobres. Isto interpela a consciência humana. Às populações que vivem sob o limiar da
pobreza, mais por causa de situações que dependem das relações internacionais políticas,
comerciais e culturais do que por circunstâncias incontroláveis, o nosso esforço comum
verdadeiramente pode e deve oferecer-lhes nova esperança ».(247)

O alimento da verdade leva-nos a denunciar as situações indignas do homem, nas quais se
morre à míngua de alimento por causa da injustiça e da exploração, e dá-nos nova força e
coragem para trabalhar sem descanso na edificação da civilização do amor. Desde o
princípio, os cristãos tiveram a preocupação de partilhar os seus bens (Act 4, 32) e de
ajudar os pobres (Rm 15, 26). O peditório que se realiza nas assembléias litúrgicas constitui
viva reminiscência disso mesmo, mas é também uma necessidade muito atual. As
instituições eclesiais de beneficência, de modo particular a Caritas nos seus vários níveis,
realizam o valioso serviço de auxiliar as pessoas em necessidade, sobretudo os mais pobres.
Tirando inspiração da Eucaristia, que é o sacramento da caridade, aquelas tornam-se a sua
expressão concreta; por isso, merecem todo o aplauso e estímulo pelo seu empenho
solidário no mundo.

A doutrina social da Igreja

91. O mistério da Eucaristia habilita-nos e impele-nos a um compromisso corajoso nas
estruturas deste mundo para lhes conferir aquela novidade de relações que tem a sua fonte
inexaurível no dom de Deus. O pedido que repetimos em cada Missa: « O pão nosso de cada
dia nos dai hoje
», obriga-nos a fazer tudo o que for possível, em colaboração com as
instituições internacionais, estatais, privadas, para que cesse ou pelo menos diminua, no
mundo, o escândalo da fome e da subnutrição que padecem muitos milhões de pessoas,
sobretudo nos países em vias de desenvolvimento. Particularmente o leigo cristão, formado
na escola da Eucaristia, é chamado a assumir diretamente a sua responsabilidade político-
social; a fim de poder desempenhar adequadamente as suas funções, é preciso prepará-lo
através duma educação concreta para a caridade e a justiça. Para isso, como foi pedido pelo
Sínodo, é necessário que, nas dioceses e comunidades cristãs, se dê a conhecer e
incremente a doutrina social da Igreja.(248) Neste precioso patrimônio, nascido da mais
antiga tradição eclesial, encontramos os elementos que orientam, com profunda sabedoria,
o comportamento dos cristãos nas questões sociais em ebulição. Amadurecida durante toda
a história da Igreja, esta doutrina caracteriza-se pelo seu realismo e equilíbrio, ajudando
assim a evitar promessas enganadoras ou vãs utopias.

Santificação do mundo e defesa da criação

92. Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir
significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças
por meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando
assim à santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim.(249) A própria
Eucaristia projeta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta
perspectiva sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o
caráter de sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela. Desta maneira, a
forma eucarística da existência pode verdadeiramente favorecer uma autêntica mudança de
mentalidade no modo como lemos a história e o mundo. Para tudo isto nos educa a própria
liturgia quando o sacerdote, durante a apresentação dos dons, dirige a Deus uma oração de
bênção e súplica a respeito do pão e do vinho, « fruto da terra », « da videira » e do « trabalho
do homem ». Com estas palavras, o rito, além de envolver na oferta a Deus toda a atividade e
canseira humana, impele-nos a considerar a terra como criação de Deus, que produz
quanto precisamos para o nosso sustento. Não se trata duma realidade neutral, nem de
mera matéria a ser utilizada indiferentemente segundo o instinto humano; mas coloca-se
dentro do desígnio amoroso de Deus, segundo o qual todos nós somos chamados a ser filhos
e filhas de Deus no seu único Filho, Jesus Cristo (Ef 1, 4-12). As condições ecológicas em
que a criação subjaz em muitas partes do mundo suscitam justas preocupações, que
encontram motivo de conforto na perspectiva da esperança cristã, pois esta compromete-nos
a trabalhar responsavelmente na defesa da criação; (250) de fato, na relação entre a
Eucaristia e o universo, descobrimos a unidade do desígnio de Deus e somos levados a
individuar a relação profunda da criação com a « nova criação » que foi inaugurada na
ressurreição de Cristo, novo Adão. Dela participamos já agora em virtude do Batismo (Col 2,
12s), abrindo-se assim à nossa vida cristã, alimentada pela Eucaristia, a perspectiva do
mundo novo, do novo céu e da nova terra, onde a nova Jerusalém desce do céu, de junto de
Deus, « bela como noiva adornada para o seu esposo » (Ap 21, 2).

Utilidade dum Compêndio Eucarístico

93. No termo destas reflexões em que de boa vontade me detive sobre as indicações surgidas
no Sínodo, desejo acolher também o pedido que os padres apresentaram para ajudar o povo
cristão a crer, celebrar e viver cada vez melhor o mistério eucarístico. Cuidado pelos
Dicastérios competentes, há-de ser publicado um Compêndio, que recolha textos do
Catecismo da Igreja Católica, orações, explicações das Orações Eucarísticas do Missal e
tudo o ma
is que possa demonstrar-se útil para a correta compreensão, celebração e
adoração do sacramento do altar.(251) Espero que este instrumento possa contribuir para
que o memorial da páscoa do Senhor se torne cada dia sempre mais fonte e ápice da vida e
da missão da Igreja; isto animará cada fiel a fazer da sua própria vida um verdadeiro culto
espiritual.

CONCLUSÃO

94. Amados irmãos e irmãs, a Eucaristia está na origem de toda a forma de santidade,
sendo cada um de nós chamado à plenitude de vida no Espírito Santo. Quantos santos
tornaram autêntica a própria vida, graças à sua piedade eucarística! De Santo Inácio de
Antioquia a Santo Agostinho, de Santo Antão Abade a São Bento, de São Francisco de Assis
a São Tomás de Aquino, de Santa Clara de Assis a Santa Catarina de Sena, de São Pascoal
Bailão a São Pedro Julião Eymard, de Santo Afonso Maria de Ligório ao Beato Carlos de
Foucauld, de São João Maria Vianey a Santa Teresa de Lisieux, de São Pio de Pietrelcina à
Beata Teresa de Calcutá, do Beato Pedro Jorge Frassati ao Beato Ivan Mertz, para
mencionar apenas alguns de tantos nomes, a santidade sempre encontrou o seu centro no
sacramento da Eucaristia.

Por isso, é necessário que, na Igreja, este mistério santíssimo seja verdadeiramente
acreditado, devotamente celebrado e intensamente vivido. A doação que Jesus faz de Si
mesmo no sacramento memorial da sua paixão, atesta que o êxito da nossa vida está na
participação da vida trinitária, que nos é oferecida n'Ele de forma definitiva e eficaz. A
celebração e a adoração da Eucaristia permitem abeirar-nos do amor de Deus e a ele aderir
pessoalmente até à união com o bem-amado Senhor. A oferta da nossa vida, a comunhão
com a comunidade inteira dos crentes e a solidariedade com todo o homem são aspectos
imprescindíveis da logiké latreía, ou seja, do culto espiritual, santo e agradável a Deus (Rm
12, 1), no qual toda a nossa realidade humana concreta é transformada para glória de Deus.
Convido, pois, todos os pastores a prestarem a máxima atenção à promoção duma
espiritualidade cristã autenticamente eucarística. Os presbíteros, os diáconos e todos
aqueles que exercem um ministério eucarístico possam sempre tirar destes mesmos
serviços, realizados com solicitude e constante preparação, força e estímulo para o seu
caminho pessoal e comunitário de santificação. Exorto todos os leigos, e as famílias em
particular, a encontrarem continuamente no sacramento do amor de Cristo a energia de que
precisam para transformar a própria vida num sinal autêntico da presença do Senhor
ressuscitado. Peço a todos os consagrados e consagradas para manifestarem, com a própria
existência eucarística, o esplendor e a beleza de pertencer totalmente ao Senhor.

95. No início do século IV, quando o culto cristão era ainda proibido pelas autoridades
imperiais, alguns cristãos do norte de África, que se sentiam obrigados a celebrar o dia do
Senhor, desafiaram tal proibição. Foram martirizados enquanto declaravam que não lhes
era possível viver sem a Eucaristia, alimento do Senhor: « Sine dominico non possumus –
sem o domingo, não podemos viver ».(252) Estes mártires de Abitinas, juntamente com
muitos outros santos e beatos que fizeram da Eucaristia o centro da sua vida, intercedam
por nós e nos ensinem a fidelidade ao encontro com Cristo ressuscitado! Também nós não
podemos viver sem participar no sacramento da nossa salvação e desejamos ser iuxta
dominicam viventes, isto é, traduzir na vida o que celebramos no dia do Senhor. Com efeito,
este é o dia da nossa libertação definitiva. Então porquê maravilhar-se quando desejamos
que cada dia seja vivido segundo a novidade introduzida por Cristo com o mistério da
Eucaristia?

96. Que Maria Santíssima, Virgem Imaculada, arca da nova e eterna aliança, nos
acompanhe neste caminho ao encontro do Senhor que vem! N'Ela encontramos realizada, na
forma mais perfeita
, a essência da Igreja. Esta vê em Maria, « Mulher eucarística » — como A
designou o servo de Deus João Paulo II (253) —, o seu ícone melhor conseguido e
contempla-A como modelo insubstituível de vida eucarística. Por isso, na presença do «
verum corpus natum de Maria Virgine – verdadeiro corpo nascido da Virgem Maria » sobre o
altar, o sacerdote, em nome da assembléia litúrgica, proclama com as palavras do cânone: «
Veneramos a memória da gloriosa sempre Virgem Maria, Mãe do nosso Deus e Senhor,
Jesus Cristo ».(254) O seu nome santo é invocado e venerado também nos cânones das
tradições orientais cristãs. Por sua vez, os fiéis « recomendam a Maria, Mãe da Igreja, a sua
existência e trabalho. Esforçando-se por ter os mesmos sentimentos que Maria, ajudam
toda a comunidade a viver em oferta viva, agradável ao Pai ».(255) Ela é a Tota Pulchra, a
Toda Formosa, porque n'Ela resplandece o fulgor da glória de Deus. A beleza da liturgia
celeste, que deve refletir-se também nas nossas assembléias, encontra n'Ela um espelho fiel.
D'Ela devemos aprender a tornar-nos pessoas eucarísticas e eclesiais para podermos
também nós apresentar-nos, segundo a palavra de São Paulo, « imaculados » perante o
Senhor, tal como Ele nos quis desde o princípio (Col 1, 22; Ef 1, 4).(256)

97. Por intercessão da bem-aventurada Virgem Maria, o Espírito Santo acenda em nós o
mesmo ardor que experimentaram os discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35) e renove na nossa
vida o enlevo eucarístico pelo esplendor e a beleza que refulgem no rito litúrgico, sinal eficaz
da própria beleza infinita do mistério santo de Deus. Os referidos discípulos levantaram-se e
voltaram a toda a pressa para Jerusalém a fim de partilhar a alegria com os irmãos e irmãs
na fé. Com efeito, a verdadeira alegria é reconhecer que o Senhor permanece no nosso meio,
companheiro fiel do nosso caminho; a Eucaristia faz-nos descobrir que Cristo, morto e
ressuscitado, Se manifesta como nosso contemporâneo no mistério da Igreja, seu corpo.
Deste mistério de amor fomos feitos testemunhas. Os votos que reciprocamente formulamos
sejam os de irmos cheios de alegria e maravilha ao encontro da santíssima Eucaristia, para
experimentar e anunciar aos outros a verdade das palavras com que Jesus Se despediu dos
seus discípulos: « Eu estou sempre convosco, até ao fim dos tempos » (Mt 28, 20).

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 22 de Fevereiro — festa da Cátedra de São Pedro
— de 2007, segundo ano de Pontificado.

BENEDICTUS PP. XVI



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